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Coluna Vitor Vogas

Uma Lei dos Diabos: Espírito Santo agora tem lei que autoriza censura

Sob as barbas do profeta e a vista grossa de Casagrande, ES a a ter lei que proíbe sátiras em manifestações culturais consideradas “desrespeito a dogma religioso”

Publicado

em

Renato Casagrande, Sabrina Sato e Alcântaro Filho

Sátira, Sato, Satanás. Não, o radical não é o mesmo, mas, por puro radicalismo religioso, o Espírito Santo agora tem, oficialmente, uma lei estadual que não cheira propriamente a enxofre, mas exala o inconfundível e intolerável odor da censura.

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Por incrível que pareça, desde a última sexta-feira (7), os capixabas vivem sob uma lei estadual que, textualmente, proíbe “o vilipêndio de ato ou objeto de culto religioso, bem como o desrespeito a crenças e dogmas religiosos praticados publicamente por meio de sátiras e atos de ridicularização em manifestações sociais, culturais e/ou de gênero, no âmbito do Estado do Espírito Santo” (grifo meu).

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Proposto em 23 de fevereiro pelo deputado Alcântaro Filho (Republicanos) e aprovado pela Assembleia Legislativa, o projeto de lei foi promulgado pelo presidente da Casa, Marcelo Santos (Podemos), conforme publicado na última sexta-feira (7) no Diário do Poder Legislativo, sob a vista grossa do governador Renato Casagrande (PSB).

Para não desagradar a determinados grupos religiosos, o chefe do Executivo Estadual preferiu deixar vencer o prazo de 15 dias úteis que tinha para vetar ou sancionar o projeto vindo da Assembleia. Não fez nem uma coisa nem outra. A abstenção do governador importa em sanção tácita.

A vista grossa neste caso é também um erro grosseiro. E não só porque a nova lei estadual é acintosamente inconstitucional, violando cláusula pétrea da nossa Carta Magna (art. 5º, IX). Não, não apenas por isso.

O não posicionamento de Casagrande implica cumplicidade tácita com algo que em primeira análise pode até parecer inofensivo, mas que se revela temerário do ponto de vista conceitual, pela fundamentação do projeto e pelos princípios que o norteiam, agora implicitamente endossados pelo Palácio Anchieta. Permitida pelo governador, a promulgação dessa lei nascida da costela da “Bancada da Bíblia” abre um precedente muito ruim e perigoso no Espírito Santo, por duas razões.

Por um lado, indica que o atual governo está disposto a ceder em demasia a pressões de segmentos religiosos, ainda que isso signifique ar por cima de princípios constitucionais e direitos fundamentais garantidos pela Lei Maior deste país – neste caso, a liberdade de expressão artística, incluindo o uso da sátira (como não?), parente próxima do humor, como recurso expressivo privilegiado para a proposição de críticas de cunho político, social e comportamental. Ora, se eventualmente a crítica for “excessiva” e considerada “ofensiva” por alguns, as leis brasileiras já disponibilizam amplos instrumentos para quem se sentir lesado buscar reparação na Justiça.

Por outro lado, deixar ar semelhante projeto, agora transformado em lei, demonstra que o governo Casagrande não tem, como se pensava, tolerância zero com o desrespeito à Constituição Federal, e o que é pior: está disposto a itir, condescender e compactuar com o exercício da censura. Sim, porque no fundo é nisso que consiste o espírito dessa lei. Senão vejamos.

Da vista grossa ao pente fino

Numa primeira leitura, o projeto parece evidentemente muito bem-intencionado – e na certa assim o é, do ponto de vista de quem o apresentou. Mas é como diz o ditado: “De boas intenções o inferno está cheio”. E como reza outro, ainda mais adequado ao contexto: “É nos detalhes que mora o Diabo”.

Se a redação do artigo 1º acabasse aqui (“Fica proibido o vilipêndio de ato ou objeto de culto religioso, bem como o desrespeito a crenças e dogmas religiosos praticados publicamente […]”), estaríamos “apenas” diante de mais uma lei absolutamente desnecessária e inócua.

Desnecessária porque redundante, ao repetir uma proibição já existente em nosso ordenamento jurídico, vetando e prevendo sanções a uma conduta já tipificada como crime em nosso Código Penal, cujo artigo 208 dispõe sobre os crimes contra o sentimento religioso: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivos de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.

Inócua porque simplesmente impraticável e condenada a ser mais uma daquelas “leis que não pegam”.

Mas a redação do artigo vai além, avançando sobre manifestações culturais específicas, que am a ser íveis de punição se alguém (quem???) as considerar desrespeitosas, ofensivas e “vilipendiantes”: “[…] por meio de sátiras e atos de ridicularização em manifestações sociais, culturais e/ou de gênero”.

Aí deixa de ser apenas desnecessário para se tornar inconstitucional. O nome disso é censura. Simples assim.

De novo: como dita o ditado, o Diabo reside nos detalhes. E um detalhe essencial para se compreender o real espírito dessa iniciativa, o contexto em que ela foi tomada e suas reais motivações é a justificativa que acompanha o projeto de lei tal como foi apresentado por Alcântaro Filho (deputado evangélico fervoroso, que faz questão de subir à tribuna sempre portando uma Bíblia, como se fosse aquela um púlpito, e o plenário do laico Parlamento, um templo religioso).

A justificativa do projeto

As ruas e calçadas ainda acumulavam confetes dos blocos carnavalescos quando o projeto foi proposto por Alcântaro, no dia seguinte à Quarta-Feira de Cinzas, em plena ressaca de uma sanha punitivista levantada por determinados fiéis e pastores evangélicos – como ocorre quase todo ano – durante os desfiles das escolas de Samba nos grupos especiais de São Paulo e do Rio.

Sentindo-se ultrajados e atacados na sua fé cristã, grupos evangélicos ergueram a voz nas redes sociais contra o enredo da carioca Acadêmicos do Salgueiro, que (cito o autor do projeto) “encenou Adão e Eva endiabrados em ‘Delírios de um paraíso vermelho’”. A própria Bíblia conta que Deus decidiu criar o primeiro casal de humanos depois de expulsar Lúcifer do Paraíso, mas isso não vem ao caso…

Histeria coletiva mesmo, em proporções descomunais, viu-se por conta da fantasia com que Sabrina Sato, rainha de bateria da paulistana Gaviões da Fiel, entrou na avenida na manhã do dia 18 de fevereiro. Foi uma grita nas redes sociais. Basta checar os comentários ao post no perfil de Sabrina em que ela exibe sua beleza trajando a fantasia em questão. Numa onda de reações contrárias – equivocadas, distorcidas e exageradas –, acusaram a musa, supostamente fantasiada de Diabo, de fazer apologia do satanismo, pactuar com o demônio e, assim, profanar o cristianismo.

Ocorre que, em primeiro lugar, a fantasia nem sequer era de “diaba”, mas do dragão de São Jorge, personagem muito caro a religiões de matriz africana – o que de pronto nos põe a refletir e nos leva a indagar: Quem na verdade estaria discriminando quem? Qual religião foi de fato ofendida no episódio? “O inferno são os outros”, como diria um personagem de Sartre na peça “Entre quatro paredes” – aliás também “censurável” para os mesmos que se insurgiram contra a fantasia de Sabrina, já que se a no inferno.

Enfim, fantasiosamente, deturparam o próprio sentido da fantasia, mas ainda que fosse de “diaba”… Rasgar e queimar o “Alcorão”, como fez um manifestante no fim de junho, do lado de fora de uma mesquita na Suécia, é obviamente “vilipêndio a objeto de culto religioso” e deve ser punido como cabe. Cuspir num crucifixo, como faz o personagem Frank Underwood em dado episódio da série “House of Cards”, idem. Daí a tomar um simples figurino de carnaval como insulto pessoal e agressão direta à fé cristã…

Mas foi nesse afã, na ressaca dessa onda reacionária, que Alcântaro teve a ideia de apresentar seu projeto. A inspiração da iniciativa está lá, registrada com ênfase na justificativa. Os dois casos concretos, Salgueiro e Gaviões da Fiel, são citados no primeiro parágrafo, seguido por uma peculiar “crítica de arte”:

“As referidas escolas e também outras não citadas não mostraram arte, e sim um confronto ofensivo e desrespeitoso em relação à religião cristã, tendo o presente projeto de lei a finalidade de evitar que aconteça algo semelhante não somente no carnaval, mas em qualquer outro evento público em território capixaba.”

Onde mora o perigo?

A julgar pela inspiração de quem propôs a nova lei, se ela for levada a ferro, fogo e enxofre, podemos deduzir que, se a musa Sabrina Sato um dia nos conceder a graça de desfilar em uma escola capixaba no Sambão do Povo, não poderá jamais se apresentar em sumários “trajes diabólicos” – nem mesmo fantasiada de dragão –, sob pena de a escola em questão sofrer algum tipo de sanção (multa? proibição de desfilar? banimento do carnaval?). Aliás, nem Sabrina nem ninguém.

Pelo mesmo raciocínio, subjacente ao projeto que originou a lei, ninguém em território capixaba poderá vender, comprar, ler e muito menos adaptar para outras artes o maior romance em língua portuguesa do século XX, “Grande sertão: Veredas”. Afinal, um dos principais motivos da obra-prima de Guimarães Rosa é a mefistofélica tentativa de pacto do vaqueiro Riobaldo, protagonista do romance, com o Diabo – chamado por quase cem nomes diferentes ao longo das mais de 500 páginas da narrativa.

E, se os mais xiitas descobrirem que a trama principal gira em torno do amor, estranho amor, desenvolvido pelo protagonista por Diadorim, seu companheiro de cangaço, serão capazes de querer queimar o livro em praça pública por propagar a “ideologia de gênero” (aliás, é melhor nem dar ideia…).

Já a TV Gazeta, afiliada da Rede Globo no Espírito Santo, teria de enfiar programação local para preencher a grade no horário da novela “Renascer”, já que em uma das subtramas o coronel “ensina” a um matuto como “criar um diabinho numa garrafa”.

Na mesma esteira, daqui a pouco hão de querer proibir a encenação nos palcos capixabas do “Auto da Compadecida” e, ainda, a exibição das muitas adaptações da peça para as telas. Afinal, na divertidíssima obra de Ariano Suassuna, o Diabo tem centralidade, como advogado de acusação, no julgamento de João Grilo e companhia, espirituosa alegoria do bíblico Juízo Final.

Seguindo essa toada, em pouco tempo, hão de querer proibir que qualquer cover de Raul Seixas cante e proclame, em palcos capixabas, que “o Diabo é o pai do rock” ou que execute qualquer uma das canções da “a do Diabo”, último álbum lançado por Raulzito.

Pelo mesmo espírito que regeu essa nova lei – e, talvez, amparando-se na própria –, daqui a pouco hão de querer vetar a exposição de qualquer afresco, mural ou grafitti que contenha representações do Diabo – personagem que, por sinal, possui múltiplas versões. No limite, hão de querer confiscar, de todas as bancas de jornais e revistas existentes em solo capixaba, inocentes revistinhas da Turma da Mônica, nas quais inofensivos diabinhos figuram com frequência – via de regra em historinhas com fundo moral, simbolizando um contraponto ao Anjinho e às boas ações humanas.

Transpondo o mesmo raciocínio para o universo dos esportes, que também não deixam de ser manifestações culturais – em muitas prefeituras, a pasta é a mesma –, se o América do Rio algum dia vier enfrentar qualquer time capixaba numa Série D da vida, a torcida do time carioca não poderá ostentar o seu mascote (sim, ele mesmo). E ai do locutor, comentarista ou repórter capixaba que, discorrendo sobre o futebol europeu num veículo local, cometer o pecado mortal de chamar o Manchester United, um dos maiores times do mundo, pelo seu apelido (“Red Devils”, os “Diabos Vermelhos”).

Quem vai definir o que é o quê?!?

Cheia de lacunas, a redação da lei carece de informações imprescindíveis para que ela possa ter qualquer efeito prático.

Além de prever punições aos “infratores” como o pagamento de multa, a proibição de receber verbas públicas e a impossibilidade de realizar eventos públicos que dependam de autorização do Governo Estadual, o texto diz que a presente lei deverá ser regulamentada pelo Poder Executivo.

Convenhamos, porém: qual autoridade ou grupo de autoridades do Governo do Estado terá competência e condições de fiscalizar, interpretar e definir o que é “vilipêndio de ato ou objeto de culto religioso” e “desrespeito a crenças e dogmas religiosos”?!? Quem é que vai definir o que é ível de sanção e quais são as sanções cabíveis em cada caso?

Isso simplesmente dá margem a critérios por demais arbitrários, subjetivos e discricionários, deixando os artistas à mercê da lente utilizada pelo intérprete, aliás inquisidor/censor.

Para os idealizadores do projeto, como visto, o conceito de “vilipêndio” e “desrespeito” é o mais elástico possível. Qualquer manifestação artística/crítica/satírica que não esteja em conformidade com seus dogmas poderá ser assim enquadrada. Se a concepção adotada for a mesma dos autores da lei, corremos o sério risco de ver manifestações artísticas satíricas, que objetivam alguma crítica social, serem tomadas por “vilipêndio a objeto de culto religioso”, e censura pura e simples sendo tomada por “sanção devida ao desrespeito a dogmas religiosos”.

O direito à liberdade de crença e ao exercício de cultos religiosos é cláusula pétrea da Constituição Federal (art. 5º, VI), assim como o direito à liberdade de expressão artística (art. 5º, IX). A pretexto de proteger um direito individual fundamental já amplamente resguardado pelas leis deste país, inclusive pela nossa Lei Maior, podemos ferir de morte outro direito assegurado três incisos depois no mesmo artigo. E, assim, retroceder à prática de algo que não pode ser chamado de outra forma.

Em “Grande sertão: Veredas”, o Tal, o Cão, o Arrenegado, o Cramulhão, o Coisa Ruim é chamado por quase cem nomes.

A censura tem um só.

Enquanto isso, ri o Sátiro…

A palavra “sátira” deriva do personagem Sátiro. Na mitologia grega, os sátiros eram seres da natureza com o corpo metade humano metade bode – e qualquer similitude com a caracterização clássica do Diabo não é mera coincidência… aliás, “Bode Velho” é um dos nomes com que se refere ao Diabo em “Grande Sertão”.

Divindades menores, os sátiros eram criaturas altamente “carnavalescas”: mantinham constantes relações sexuais com as ninfas e, com elas, celebravam Dionísio, o deus das festas, do vinho, da loucura, do teatro e (ora, ora…) dos ritos religiosos.

Os sátiros estão dando risada desta nossa nova lei estadual.

Tudo invertido…

Veem-se tantos evangélicos falando em “cristofobia” e “perseguição aos cristãos” no Brasil, mas ninguém vê templos cristãos sendo invadidos e depredados no país… O contrário, sim, é verídico: regularmente espaços de religiões de matriz africana são invadidos e vilipendiados Brasil afora – não raro, por pessoas que se arvoram em “defensores da fé cristã”. E, curiosamente, ante esses fatos concretos, não se vê a mesma indignação por parte dos deputados “cristãos” que fazem questão de empunhar Bíblias – a Constituição, nem tanto…

O que diz a Constituição Federal

Está consagrado na Carta Magna, em seu artigo 5º, inciso IX: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

No mesmo artigo, inciso VI, a Constituição consagra: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

O artigo 5º é o que relaciona os direitos e deveres individuais e coletivos dos brasileiros. É o primeiro a tratar dos direitos e garantias fundamentais. Direitos e garantias individuais são cláusulas pétreas da Constituição Federal, conforme disposto na própria Constituição (art. 60, § 4º, IV). Cláusulas pétreas, vale lembrar, são aquelas que não podem ser modificadas por emendas constitucionais.