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Coluna Vitor Vogas

Reeleição antecipada em Guarapari fere a democracia

Lei Orgânica do município não pode ser rasurada, reescrita e emendada só para contemplar os interesses políticos do grupo que comanda a Câmara no momento e que pegou um atalho para seguir no poder na Casa

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Câmara Municipal de Guarapari. Foto: site da Câmara

Por 14 votos favoráveis, duas abstenções e nenhum voto contrário, a chapa liderada pelo atual presidente da Câmara Municipal de Guarapari, Wendel Lima (PTB), reelegeu-se nesta quinta-feira (14) para continuar à frente da Mesa Diretora no segundo biênio do atual mandato, a ser iniciado somente em janeiro do ano que vem. A antecipação da eleição interna em mais de oito meses foi possível graças a uma emenda à Lei Orgânica Municipal proposta por 15 vereadores, incluindo todos os membros da chapa única, e aprovada pelo plenário em 2º turno no último dia 5.

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Com o máximo respeito a todos os envolvidos, mudar as regras do certame dessa forma, acintosamente em benefício próprio, fere princípios elementares do jogo democrático. Ainda mais com a bola já rolando. A antecipação da eleição da Mesa Diretora da Câmara de Guarapari é evidente atalho criado e usado pelos atuais ocupantes da Mesa em causa própria para se perpetuarem nas respectivas posições de poder.

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Regras existem por um motivo. Dispositivos legais não podem ser emendados e adaptados às necessidades políticas do grupo que ocupa o poder no momento. Não podem ser editados em função de interesses políticos.

Os vereadores de Guarapari podem argumentar que, a rigor, não fizeram nada de errado, muito menos de ilegal ou antirregimental. Ao contrário: estão cumprindo rigorosamente o que diz o novo texto da Lei Orgânica Municipal e do Regimento Interno da Câmara. Acontece – e aqui reside o casuísmo – que o texto dessas leis não permitia tal antecipação. Foi rasurado e reescrito justamente de modo a abrigar as necessidades imediatas do grupo que deseja permanecer no comando da Câmara; emendado a fim de se adequar aos interesses políticos do grupo.

E leis tão importantes não podem, ou pelo menos não deveriam, ser rasuradas e reescritas de maneira tão banal, ao sabor da conveniência do grupo no poder do momento. Depois vem outro grupo e deixa tudo de novo como antes, ou piora ainda mais o texto, numa emenda da emenda que sai ainda pior que o soneto.

Na verdade, esse é exatamente o caso concreto da Câmara de Guarapari. Ao longo dos últimos anos, emenda após emenda, os vereadores vêm mudando e piorando cada vez mais a legislação que trata especificamente da eleição da Mesa Diretora para o segundo biênio do mandato. Parecem seguir aquela máxima de que nada já está tão ruim que não possa piorar ainda mais.

Como rasgar um Regimento Interno em três os?

A emenda aprovada na semana ada (nº 4/2022) alterou um artigo da Lei Orgânica Municipal cuja redação na verdade já era ruim e já tinha sido dada por emenda anterior.

No texto original do Regimento Interno da Câmara de Guarapari, editado em 1997, o artigo 6º dizia, basicamente, que a eleição da Mesa Diretora para o segundo biênio da legislatura deveria ser realizada na última sessão do primeiro biênio (no caso concreto, se mantida a redação original, seria em dezembro deste ano). Simples assim. Tudo dentro da normalidade e conforme as leis maiores do país.

Aí, em 2010, a coisa começou a ficar estranha. Por meio da Emenda à Lei Orgânica Municipal nº 2, de 19 de novembro daquele ano, a Câmara deu ao presidente o poder de convocar a eleição da Mesa do segundo biênio a qualquer momento do segundo semestre do segundo ano do mandato, avisando a todos com antecedência de cinco dias (no caso concreto, seria a partir de julho deste ano).

Mas e o Regimento Interno? Não dizia outra coisa? Sim, dizia. Então, na legislatura ada, os vereadores aprovaram uma resolução (nº 99/2017) que mudou a redação do artigo 6º do Regimento Interno para: “A eleição para renovação da Mesa para o segundo biênio se dará na forma do art. 28 da Lei Orgânica Municipal”. Ou seja, esqueçam o Regimento Interno! O que então valia mesmo era aquela primeira emenda de 2010 à Lei Orgânica, explicada no parágrafo acima.

Já estava ruim. Mas agora piorou.

Com a nova emenda aprovada no último 5 de abril, o presidente adquiriu superpoderes: pode convocar a eleição da Mesa do segundo biênio a qualquer momento do segundo ano do mandato, avisando a todos só na véspera, se assim o desejar. É o que Wendel Lima acaba de colocar em prática.

Pelo andar da carruagem, ninguém vai se espantar se, nos próximos anos, a Câmara de Guarapari aprovar nova emenda, decidindo que o presidente eleito para o primeiro biênio (no início do mandato, portanto) poderá convocar quando bem entender a eleição da Mesa que comandará a Casa somente no segundo biênio.

Nesse caso, logo após tomar posse e ser eleito para comandar o Poder Legislativo nos primeiros dois anos do mandato, o presidente já poderia antecipar a eleição seguinte e assegurar a própria recondução, com dois anos de antecedência, para a segunda metade do mandato – e assim garantir precocemente a sua permanência no cargo por toda a legislatura.

O exemplo de Erick Musso

Foi mais ou menos o que tentou fazer o presidente Erick Musso (Republicanos) na Assembleia Legislativa, em novembro de 2019. No dia 27 daquele mês, dois dias após o plenário aprovar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que conferiu esse superpoder ao presidente da Assembleia, Erick convocou às pressas uma sessão eleitoral, na qual foi reeleito pelos colegas, com mais de um ano de antecipação, para presidir a Assembleia também no biênio 2021-2023 (o atual).

A “eleição surpresa” foi anulada pela Justiça e a Emenda nº 113/2019, originada por aquela PEC, foi declarada inconstitucional, em decisão lavrada no dia 8 de julho de 2020 pelo juiz Aylton Bonomo, da 3ª Vara Federal Cível de Vitória, acolhendo ação civil pública movida em dezembro de 2019 pela OAB-ES contra a Assembleia.

Após um novelão político, com direito a acusações de traição e quebra de acordo na surdina com o Palácio Anchieta, Erick acabou de fato sendo reconduzido para mais um biênio na presidência da Assembleia (o atual), mas na data certa, prevista no texto original da Constituição Estadual: 1º de fevereiro de 2021, na primeira sessão do terceiro ano da legislatura.

Méritos versus princípios

Em conversa com a coluna, explicando as razões da antecipação, Wendel deu uma justificativa muito calcada no próprio mérito. Em suas palavras, ele está fazendo um bom trabalho à frente da Câmara, baseado em resultados e reconhecido pelos colegas. Do contrário, não teria conseguido reunir o apoio de 15 dos 17 vereadores para a sua reeleição prematura.

Mas, afora o fato de que apoio político muitas vezes não tem nada a ver com avaliação de resultados pelos pares, não se trata aqui de uma questão de méritos e sim de princípios.

Ninguém está dizendo que o atual presidente não mereça se reeleger (até porque nem temos elementos para fazer tal avaliação). A questão não é “quem” e sim “quando” e “como” foi feito esse processo.

Wendel Lima poderia ser o melhor presidente de Câmara entre os mais de 5 mil municípios deste país. Mas isso é irrelevante, simplesmente não vem ao caso. Vamos esquecer nomes e pessoas, e falar em hipótese. Suponhamos que o atual presidente, beneficiado por essa emenda, realmente seja muito bom… Ora, poderia ser o oposto: o presidente da Câmara de Guarapari também poderia ser um político corrupto, desonesto, mal-intencionado… E é aí que mora o perigo.

Sentado na cadeira de presidente sob as mesmas regras, tão generosas e benéficas à própria reeleição, esse presidente ruim também gozaria das mesmas facilidades para se manter no cargo e se perpetuar no poder. Seria muito difícil removê-lo.

Por isso, insistimos: esse tipo de regramento não pode ser modificado em função de nomes, de pessoas e de situações momentâneas. Não pode ser rasurado e reescrito com tamanha naturalidade, segundo a conveniência de quem ocupa as posições de poder no momento. Deve ser respeitado e preservado em homenagem a princípios como previsibilidade, estabilidade e segurança jurídica.

Instituições do Estado, como a OAB-ES e o Ministério Público Estadual, não fariam mal em atentar para situação política e jurídica tão anômala registrada em um município da Região Metropolitana.

Câmaras municipais deveriam se balizar pela Câmara Federal

A própria Constituição Federal concede relativa autonomia às Casas Legislativas estaduais e municipais para estabelecerem as próprias normas de funcionamento, por meio das respectivas leis orgânicas, resoluções e regimentos internos. Mas, quando se trata de eleger as respectivas Mesas Diretoras, a referência e normativa geral deveria ser o Regimento Interno da Câmara Federal, em seus artigos 5º e 6º:

A eleição da Mesa Diretora para o primeiro biênio do mandato deve ser realizada no dia 1º de fevereiro do primeiro ano da legislatura, em sessão preparatória da primeira sessão legislativa (art. 5º).

Quanto à eleição da Mesa para o segundo biênio do mandato, deve ser realizada “no terceiro ano de cada legislatura, em data e hora previamente designadas pelo Presidente da Câmara dos Deputados, antes de inaugurada a sessão legislativa e sob a direção da Mesa da sessão anterior” (art. 6º). Ou seja, no início do terceiro ano da legislatura.

A Constituição Federal e o Regimento Interno da Câmara Federal vedam a recondução de qualquer membro da Mesa, do primeiro para o segundo biênio, dentro da mesma legislatura.

Vitor Vogas

Nascido no Rio de Janeiro e criado no Espírito Santo, Vitor Vogas tem 39 anos. Formado em Comunicação Social pela Ufes (2007), dedicou toda a sua carreira ao jornalismo político e já cobriu várias eleições. Trabalhou na Rede Gazeta de 2008 a 2011 e de 2014 a 2021, como repórter e colunista da editoria de Política do jornal A Gazeta, além de participações como comentarista na rádio CBN Vitória. Desde março de 2022, atua nos veículos da Rede Capixaba: a TV Capixaba, a Rádio BandNews FM e o Portal ES360. E-mail do colunista: [email protected]

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