Coluna Vitor Vogas
Vitória apoia a reforma tributária, mas de modo algum “essa reforma”
Secretária municipal da Fazenda explica por que a istração Pazolini, como muitos municípios, é contra o projeto tal como aprovado pela Câmara

Neyla Tardin é secretária municipal da Fazenda de Vitória. Crédito: André Sobral/PMV
Comandada por Lorenzo Pazolini (Republicanos), a Prefeitura de Vitória é a favor de uma reforma tributária, mas não “dessa reforma tributária” aprovada em dois turnos pela Câmara dos Deputados na última quinta-feira (6). Porta-voz da istração de Pazolini na área econômica, a secretária municipal da Fazenda, Neyla Tardin, expõe sérias ressalvas, compartilhadas por muitos outros municípios, em relação ao texto da PEC 45/2019 tal como foi aprovado na Câmara – para ela, de maneira açodada.
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Os receios e preocupações da gestão Pazolini, explicados pela secretária em entrevista à coluna na última segunda-feira (10), têm a ver com a perda de receita tributária que Vitória certamente amargará, mas, sobretudo, com a perda de autonomia do município para gerir a própria arrecadação de impostos.
Sem perfil nem aspirações político-partidárias, a secretária chega a dizer que, se fosse deputada federal e tivesse participado da decisão em plenário na última quinta-feira, teria votado contra o texto do projeto relatado pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), o qual ainda pode ser modificado durante a tramitação no Senado – e ela assim espera.
Para entendermos melhor a franca resistência da Prefeitura de Vitória a “essa reforma tributária”, precisamos antes compreender duas premissas basilares da proposta recém-aprovada na Câmara e, ainda, a atual composição da receita tributária da capital do Espírito Santo, onde o Imposto sobre Serviços (ISS) desempenha um papel importantíssimo, sendo a segunda maior fonte de receita.
A pedra angular “dessa” (ou de qualquer outra) reforma tributária, neste primeiro momento centrada na taxação do consumo, é a unificação de impostos. O que se busca com isso é a simplificação do sistema tributário nos três níveis da istração pública (União, estados e municípios) e a desburocratização da atividade empresarial no país.
No caso da unificação de tributos, seguindo parcialmente um modelo adotado com êxito na maior parte do mundo, a reforma recém-aprovada pelos deputados propõe a “fusão” de cinco impostos em apenas dois (o chamado “IVA Dual”). “IVA” é a sigla de Imposto sobre Valor Agregado.
Também denominada IVA Nacional, a futura Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) agregará o IPI, o PIS e a Cofins, sendo recolhida aos cofres da União.
Já o futuro Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), também chamado de IVA Subnacional, unificará os atuais ICMS (estadual) e ISS (municipal). Em uma mesma atividade econômica, todos os estados e municípios deverão praticar rigorosamente a mesma alíquota – a ser definida por meio de lei complementar.
Esse novo imposto será arrecadado e centralizado por um novo organismo, o Conselho Federativo, que ainda será criado e regulamentado. A receita proveniente de toda a arrecadação de IBS no país inteiro será distribuída aos entes subnacionais (estados e municípios), segundo critérios ainda não muito bem definidos.
Outro pilar da reforma aprovada na Câmara é a migração da incidência da tributação da origem para o destino. Vale dizer: o imposto sobre o consumo de bens e serviços ará gradualmente a ser cobrado no local do consumo, e não mais no local da produção (onde a empresa está sediada).
Para entendermos os receios de Vitória, tudo isso precisa estar bem claro.
Por si mesma, a migração do recolhimento da origem para o destino já tende a gerar perda de receita para a capital capixaba, assim como para o estado do Espírito Santo. É possível, aliás, traçar um paralelo entre os dois entes.
Com população pequena, o Espírito Santo basicamente produz muito mais para vender em outros estados do que consome produtos vindos de outras unidades federativas. É, portanto, um estado muito mais “produtor” que “consumidor”. A principal fonte de receita do Estado é o ICMS.
Com a simples migração da incidência do IBS (ICMS + ISS) para o destino, a perda anual para o Espírito Santo, segundo projeções da Secretaria de Estado da Fazenda (Sefaz), pode chegar perto de R$ 3,5 bilhões por ano – sem considerar compensações também previstas na reforma.
No caso de Vitória, o raciocínio é similar. A capital capixaba também tem população muito pequena, inferior a 400 mil habitantes, mas tem muitas empresas de serviços sediadas em seu território. Assim, apesar de não ser um centro consumidor, Vitória tem, historicamente, elevada arrecadação própria de ISS, imposto que incide principalmente sobre o comércio e empresas de tecnologia.
Isso porque, apesar da baixa população, Vitória é uma cidade com alta renda per capita, um bom ambiente de negócios e, por via de consequência, considerável poder de estimular empreendimentos.
Para se ter uma ideia da importância do ISS na composição da receita da Capital, de tudo o que o município arrecadou em 2022, nada menos que 24% corresponderam ao recolhimento desse tributo. De uma receita total de R$ 2,647 bilhões confirmada no ano ado, o ISS representou R$ 637,6 milhões.
Para 2023, a estimativa é que a fatia referente ao ISS corresponda a 21% do bolo total: R$ 584,4 milhões sobre R$ 2,788 bilhões.
Desse modo, com a transferência da tributação da origem para o destino, Vitória fatalmente sofrerá uma dupla perda: numa mão, perderá receita advinda da própria arrecadação tributária (por meio do atual ISS); na outra, ará a receber um ree de ICMS menor por parte do Governo do Estado na partilha do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) – a cota correspondente a cada cidade obedece a um cálculo que leva em conta variáveis como população e renda per capita.
Diante de perguntas ainda não respondidas e muitos critérios a serem definidos por lei complementar, Neyla Tardin no momento trabalha com projeções de cenários, mas evita estimar o tamanho do impacto negativo da reforma para Vitória – como a Sefaz, por exemplo, arriscou-se a fazer. “Não sei qual é a base de cálculo. Posso te dar cinco números diferentes. Não tenho um preciso para te dar.” A secretária garante, porém: espera-se perda de receita. Resta saber qual será sua dimensão.
Esse fato por si já seria motivo suficiente de preocupação. Mas, a bem da verdade, no entendimento da equipe econômica da Prefeitura de Vitória, esse nem é o aspecto mais grave da PEC 45/2019.
Perda de autonomia na gestão tributária
Para a istração de Pazolini. o ponto central de discordância, motivo maior de resistência e principal ressalva feita por Neyla a esse modelo de reforma diz respeito àquela primeira premissa explicada acima: a unificação do ICMS (estadual) ao ISS (municipal) no futuro IBS (IVA Subnacional).
Na avaliação da gestão municipal, exposta pela secretária, esse modelo de reforma é por demais centralizador e priva os municípios da autonomia necessária para definir não só as próprias alíquotas sobre determinadas atividades como para estabelecer e promover políticas de desenvolvimento econômico em diferentes regiões istrativas dentro da própria cidade. Hoje pratica uma alíquota de ISS reduzida para alguns locais.
“Vou te dar um exemplo: no Centro de Vitória, quem abrir um negócio paga menos ISS. Com o que prevê a reforma, não poderemos mais fazer isso”, explica didaticamente a secretária e professora da Fucape Business School.
“Se não tivermos gestão sobre os recursos, não conseguiremos, por exemplo, identificar qual é a parte da cidade que mais precisa de desenvolvimento e baixar a alíquota para atrair investimentos para lá. Não poderemos reduzir a alíquota em regiões que queremos que cresçam. Quando a alíquota vem de cima para baixo, não temos nenhum tipo de gestão sobre isso. Perdendo poder de gestão tributária, não conseguiremos gerar desenvolvimento regional.”
Outra crítica explicitada por Neyla diz respeito à concentração ainda maior de poderes na União, o que, na sua avaliação, compromete o princípio do pacto federativo:
“Ficaremos à mercê da União. Essa reforma concentra muito poder decisório de política tributária na União. E, num país de pacto federativo, com desconcentração política e istrativa, implantar uma reforma dessa forma, sem respeitar a heterogeneidade das regiões, além de muito arbitrário, acaba com o desenvolvimento regional. Vai ser difícil planejar o uso dos nossos recursos. Não teremos poder sobre a alíquota e só vamos receber, mas vai ser difícil até anteciparmos o que vamos receber.”
Autossuficiência abalada
Mesmo dentro do Espírito Santo, Vitória pode ser considerada, até hoje, um caso à parte de “autossuficiência financeira”. Justamente por dispor de autonomia e pujança na arrecadação própria de ISS, a Capital não depende (ou depende muito pouco) de rees estaduais e federais, diferentemente inclusive de vizinhas na Grande Vitória.
No primeiro semestre deste ano, de tudo o que já entrou no caixa de Vitória, mais da metade (54,3%) corresponde a receita própria: foram R$ 638,7 milhões de um total de R$ 1,175 bilhão. Aí também entram IPTU e outras taxas municipais, mas o grosso mesmo vem do ISS. Rees estaduais representam 31,4%. Transferências federais, 13,3%.
Sem autonomia para gerir a própria arrecadação tributária, mesmo essa autossuficiência ficará prejudicada, enfatiza a secretária: “O ISS representa ¼ de toda a receita de Vitória. O ICMS entra como transferência estadual. Praticamente 60% de tudo o que a gente arrecada e recebe de transferência hoje [ISS + ICMS] ará a não ser mais gerido pelo município. Essa junção é muito prejudicial para o que os juristas chamam de pacto federativo”.
Mas o que Vitória defende, então?
A secretária faz questão de destacar: assim como outros municípios, reunidos na Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e outras entidades, Vitória não é conceitualmente contra a reforma tributária. Ao contrário, defende sua necessidade e sua urgência. Apenas discorda do modelo aprovado pela Câmara, por entendê-lo como prejudicial aos interesses dos municípios.
“Ninguém em sã consciência seria contra uma reforma tributária. A reforma é necessária e urgente. Concordamos que o sistema que temos hoje é ruim demais para o desenvolvimento econômico. E essa reforma tem pontos que são interessantes. Por exemplo, a padronização de uma legislação única para o ICMS nos 27 estados. Hoje o que temos são 27 legislações diferentes sobre o ICMS.”
Qual alternativa defende, então, a istração de Pazolini? Precisamente aquela defendida pela Frente Nacional de Prefeitos, contida na PEC 46/2022 e apelidada de “Simplifica Já”. A secretária já começou a explicá-la na resposta anterior.
A diferença fundamental dessa proposta em relação à da PEC 45/2019 é que ela não unifica ISS e ICMS. Padroniza as regras do ICMS nos 27 estados e faz o mesmo com as regras de ISS nos cerca de 5,5 mil municípios, mas mantém a segregação entre esses dois impostos, preservando, ao menos parcialmente, a autonomia dos municípios sobre a definição das próprias alíquotas de ISS.
“O que é defendido não apenas por Vitória, mas pelos municípios de forma geral, na Frente Nacional de Prefeitos e na Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf), na verdade é a segregação do ICMS e do ISS; que a legislação do ICMS nos 27 estados seja uma e a legislação do ISS nos cerca de 5,5 mil municípios seja outra; que não haja a junção do ICMS com o ISS”, resume Neyla.
“Açodamento”
Outra crítica destacada pela secretária é ao “açodamento” com que, a seu ver, foi realizada a votação na Câmara: “Foi uma votação acelerada, no ânimo do novo, da esperança, do contentamento, sem se ter muita consciência das consequências disso. Muitos deputados que votaram, dez dias antes não saberiam explicar o que estavam votando, não por falta de conhecimento, mas porque o assunto é de fato altamente complexo”.
População como critério
Neyla também chama a atenção para outro fator de risco não só para Vitória como para todo o Espírito Santo.
Segundo os critérios de preenchimento das cadeiras no Conselho Federativo, aprovados pela Câmara dos Deputados, municípios mais populosos terão maior representação e maior peso no resultado das votações do futuro órgão. Pior para os menos populosos.
“Isso é outro problema. Quando você usa o critério populacional, você beneficia, por exemplo, cidades que são muito populosas, mas que não têm desenvolvimento econômico e que não fizeram nada para ter desenvolvimento econômico, que não tiveram iniciativa e planejamento de gestão pública, por vários governos, para estimular esse crescimento e atrair investimentos, como foi feito em Vitória.”
“Nada é tão ruim que não possa piorar”
Ela encerra assim:
“Algumas narrativas precisam ser superadas. Por exemplo, a ideia de que o sistema tributário é muito ruim e qualquer coisa que fizermos vai melhorá-lo. Isso não é verdade. Nada é tão ruim que não possa piorar. Não é uma reforma açodada que vai melhorar o sistema que temos. Estamos diante de uma reforma imperfeita. Existe a ‘reforma perfeita’? Não. Mas essa reforma específica é muito ruim para os municípios. Não é essa a reforma que queremos ver aprovada. Queremos uma reforma? Queremos uma reforma. Mas não essa.”
Adendo: guerra fiscal
Neyla afirma não ser contra a guerra fiscal travada entre as unidades federativas, cujo fim também está entre os principais objetivos perseguidos pela reforma que ou na Câmara. “Existe uma narrativa de que a guerra fiscal é ruim. Ela não é ruim, só que tem que ser regulada…”
Falando em guerra, joguei essa granada e saí correndo. Isso é assunto para outra coluna.
