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Coluna Vitor Vogas

Tíquete para os deputados: o risco de efeito cascata nas Câmaras

Auxílio-alimentação criado na Assembleia deu o argumento ideal para vereadores pleitearem o mesmo. Mas TCES já concluiu que Câmaras não podem pagá-lo

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Plenário da Assembleia Legislativa. Foto: Ales

Além do impacto potencialmente superior a R$ 600 mil por ano, da falta de transparência que marcou o processo e dos muitos questionamentos suscitados pela medida, o auxílio-alimentação de mais de R$ 1,8 mil por mês aprovado pelos deputados estaduais na última quarta-feira (19) para eles mesmos pode ter repercussões e desdobramentos muito além do Palácio Domingos Martins.

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A obscura aprovação do benefício vem acompanhada do fundado temor de que a legislação em causa própria gere um efeito cascata pelas Câmaras Municipais do Espírito Santo, a partir do precedente aberto pela Assembleia Legislativa. Talvez seja este, inclusive, o maior risco contido na resolução aprovada sem a menor publicidade pelos deputados estaduais.

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Não há atrelamento direto. Não é porque os deputados estaduais ganharam (ou se deram) esse direito que os vereadores Estado afora também arão a receber auxílio-alimentação. Cada Câmara Municipal, se o quiser, precisa apresentar, votar e aprovar resolução própria nesse sentido.

A Constituição Federal só vincula o teto salarial de vereadores ao salário dos deputados do respectivo estado, estabelecendo que o salário máximo dos edis não pode ultraar determinado percentual do que ganham os deputados (o percentual varia conforme a população da cidade). A Carta Magna, porém, não estabelece vínculo algum entre as Casas Legislativas estaduais e municipais com relação a auxílio-alimentação e benefícios afins.

O problema então não é legal ou jurídico, mas de outra ordem: os deputados estaduais do Espírito Santo acabam de oferecer aos vereadores espalhados pelo Estado o melhor argumento possível para que eles também busquem receber o benefício a partir de agora, criando para si um auxílio equivalente (ainda que em valores diversos).

Ora, se os membros do Parlamento estadual agora fazem jus a uma verba específica para alimentação, por que os membros dos Parlamentos municipais não poderão também reivindicá-la? Se, em nível estadual, nossos parlamentares acabam de estender o benefício para eles próprios, por que em nível municipal os vereadores não hão de fazer o mesmo?

Por simetria, vereadores terão motivo para querer o mesmo tratamento (ou autotratamento) dos deputados e, portanto, uma verba similar. E é previsível que, a partir de agora, se sintam no direito de se conceder o mesmo direito. Mais que previsível: é até razoável que em a se sentir cheios de razão neste debate.

Afinal, vereadores têm agora um argumento pronto para quem quer que queira contestar eventual concessão de vale-alimentação para eles: “Ora, olhe para o andar de cima e veja o que é praticado ali”. Resposta na ponta da língua.

Ocorre que não é tão simples. Os questionamentos dispostos acima apontam para o prédio ao lado da Assembleia, onde talvez se possam encontrar algumas respostas necessárias: o do Tribunal de Contas do Estado (TCES).

Hoje, na Corte de Contas do Espírito Santo, o entendimento predominante é o de que Câmaras Municipais não podem pagar auxílio-alimentação para vereadores. Ponto.

Foi esse o entendimento firmado pelo conselheiro Luiz Carlos Ciciliotti em abril de 2021, em resposta à consulta protocolada pelo presidente da Câmara de Colatina.

No mesmo sentido, na semana ada, o conselheiro Rodrigo Coelho suspendeu cautelarmente (de maneira imediata e não definitiva) a concessão de auxílio-alimentação para os vereadores de Alfredo Chaves. A verba extra havia sido aprovada pela Câmara da cidade interiorana por meio de resolução interna (equiparável à da Assembleia, porém feita de modo mais transparente e no âmbito do Poder Legislativo municipal).

Neste caso, é perfeitamente possível inverter a pergunta feita acima e devolver a bola para o TCES. A pergunta certa, então, não é “se os deputados quiseram, criaram e agora podem receber, por que os vereadores não podem pleitear o mesmo?”. Não.

A formulação correta é: se o TCES entende que vereadores não podem, por que o mesmo entendimento não há de se aplicar aos deputados estaduais?

O presidente do TCES, Rodrigo Chamoun, preferiu não conceder entrevista sobre a criação do auxílio-alimentação para deputados estaduais.

Qualquer cidadão, deputado ou partido pode apresentar denúncia ou representação ao TCES contra o pagamento do benefício na Assembleia. O Ministério Público também, naturalmente.

Denúncia contra o auxílio em Alfredo Chaves: pagamento suspenso

A denúncia com pedido cautelar contra a Resolução 002/2023 da Câmara de Alfredo Chaves foi feita por um cidadão. Como se lê na decisão do conselheiro Rodrigo Coelho de suspendê-la, a resolução “concedeu auxílio-alimentação aos vereadores da Câmara de Alfredo Chaves, independente [sic] de comprovação da realização de atividade pública e do tempo despendido nela”. O Portal da Transparência da Câmara prova que os valores já estavam sendo pagos aos edis da cidade.

O autor da representação argumentou que a referida resolução afronta o entendimento do próprio Tribunal de Contas do Estado nesta matéria, conforme parecer dado em consulta de 2021 pelo conselheiro Luiz Carlos Ciciliotti. Este, por sua vez, reafirmou pareceres no mesmo sentido dados em 2005 pelo TCES em outras duas consultas com objeto parecido (uma delas de autoria do então presidente da Câmara de São Gabriel da Palha, acerca da possibilidade de pagamento de diárias aos vereadores).

Como relator da representação, Rodrigo Coelho decidiu acolher o pedido e suspender os efeitos da resolução até o julgamento da ação no plenário do TCES. O conselheiro avaliou que a resolução aprovada pela Câmara de Alfredo Chaves é manifestamente contrária ao entendimento da Corte, além de ferir os princípios da istração pública previstos no artigo 37 da Constituição Federal (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, economicidade etc.).

Para Coelho, havia “fundado receio de grave ofensa ao interesse público e risco de ineficácia da decisão de mérito”, se não fosse interrompido de imediato o pagamento indiscriminado da verba indenizatória aos vereadores.

Consulta da Câmara de Colatina: a resposta é não

Em 15 de abril de 2021, o TCES já havia reafirmado o próprio entendimento de que Câmaras Municipais do Espírito Santo não podem pagar auxílio-alimentação a vereadores como verba fixa e de forma indiscriminada.

Essa foi a resposta do conselheiro Luiz Carlos Ciciliotti a uma consulta formulada pelo então presidente da Câmara Municipal de Colatina, Jolimar Barbosa da Silva, referendada pelo Pleno do TCES na referida data.

No processo, Ciciliotti recuperou o parecer dado na consulta 25/2005, ainda válido (aquele mesmo citado por Coelho na decisão sobre Alfredo Chaves).

Conforme matéria publicada no site do TCES, Ciciliotti sustentou que a concessão de tal benefício a parlamentares “seria incabível, visto que eles não têm jornada de trabalho regular, ou seja, quantidade de tempo diário, fixada em espécie normativa, necessariamente despendida com o serviço público, como os servidores públicos têm”.

Em outras palavras, deputados e vereadores não podem querer se arrogar os mesmos direitos de servidores públicos por um motivo simples: diferentemente daqueles, parlamentares não batem ponto. Não têm jornada de trabalho fixa.

Ainda segundo a publicação do TCES, o parecer de Ciciliotti ressalvou que, “nos dias em que os vereadores estiverem exercitando suas tarefas na sede da Câmara Municipal ou fora dela, e estas atividades necessitarem ser interrompidas para a alimentação do meio-dia, o auxílio-alimentação pode ser concedido, desde que muito bem comprovado o tempo despendido e a atividade pública dos parlamentares”.

Na avaliação de Ciciliotti, essa possibilidade só existe quando os vereadores estiverem realizando suas tarefas constitucionais, ou seja, atividades de produção de normas e de fiscalização.

“Quaisquer outras atividades desenvolvidas por vereadores que não se coadunarem com o exercício fiscalizatório ou legiferante [de confecção de leis] não merecerão o auxílio-alimentação, como por exemplo atividades privadas e atividades popularmente conhecidas como assistencialistas”, destaca o parecer.

Em outras palavras, o entendimento firmado pelo TCES em 2005 e revalidado em 2021 deixa claro que auxílio-alimentação não é nem pode ser tratado como verba remuneratória, paga em parcelas fixas mensais e independentemente de comprovada necessidade.

Na verdade, a verba tem caráter indenizatório, ou seja, existe e pode ser paga para indenizar o gasto com alimentação de parlamentares em determinado dia de trabalho, desde que naquele dia haja comprovada necessidade; desde que o parlamentar esteja realmente em serviço; desde que tenha precisado interromper a jornada de trabalho para se alimentar em pleno cumprimento do seu dever de legislar e fiscalizar; e desde que o parlamentar preste contas dos gastos à Casa, com ampla publicidade.

Além de revalidar o parecer de 2005, Ciciliotti acolheu a sugestão do Ministério Público de Contas, informando ao então presidente da Câmara de Colatina que as despesas indenizatórias com o auxílio-alimentação deveriam ser disponibilizadas no Portal da Transparência da Casa.

Jurisprudência do TCES

Citado por Ciciliotti em 2021 em resposta à consulta da Câmara de Colatina e reafirmado por Rodrigo Coelho em decisão cautelar na denúncia contra a Câmara de Alfredo Chaves, o Parecer em Consulta TC 025/2005, do TCES, é didático:

“[…] como vereadores não têm jornada de trabalho regular, ou seja, quantidade de tempo diário, fixada em espécie normativa, necessariamente despendida com o serviço público, como os servidores públicos têm, em princípio, seria incabível a concessão de tal benefício a edis.

Todavia, nos dias em que esses mesmos vereadores estiverem exercitando suas tarefas constitucionais, quais sejam, atividades de fazimento de normas e de fiscalização, durante grande parte dos mesmos, na sede camarária ou fora dela, e estas atividades necessitarem ser interrompidas para a alimentação do meio-dia, entendemos que poderá ser concedido o auxílio-alimentação indagado, desde que muito bem comprovado o tempo despendido e a atividade pública dos edis.

Quaisquer outras atividades desenvolvidas por vereadores que não se coadunarem com o exercício fiscalizatório ou legiferante não merecerão o auxílio-alimentação, como por exemplo atividades privadas e atividades popularmente conhecidas como assistencialistas.”

Já no Parecer em Consulta TC 014/2005, formulada pela Câmara de São Gabriel da Palha, analisando a possibilidade de pagamento de diárias, o TCES também deixou uma lição válida para a concessão de auxílio-alimentação (até porque a natureza dessa verba também é indenizatória):

“Em decorrência da possibilidade de pagamento da diária, que tem natureza indenizatória, tais obrigações se impõem: previsão em lei; comprovação dos gastos; prestação de contas. Outrossim, há que se destacar que as referidas despesas com diárias estão atreladas aos princípios constitucionais da moralidade, economicidade, razoabilidade, devendo representar necessidades sóbrias de pousada, alimentação e locomoção, pois do contrário – valores exorbitantes – poderá ser considerado como forma irregular de remuneração indireta. (grifo meu)