Coluna Vitor Vogas
MPES: entre a ameaça a comissionados e concurso para cargos efetivos
Com a iminente extinção de 307 vagas em comissão pelo STF, procuradora-geral ficou sem escolha senão se antecipar a uma derrota certa e se adequar ao que o Supremo vai exigir

Fachada da sede do MPES. Crédito: Assessoria do MPES
Por meio de projeto de lei aprovado ontem (26) pela Assembleia Legislativa, a procuradora-geral de Justiça, Luciana de Andrade, antes de deixar o cargo, promoverá uma megarreforma istrativa no Ministério Público Estadual (MPES), incluindo a criação de 778 cargos efetivos a serem preenchidos por concurso público.
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O projeto é tão abrangente e foi aprovado tão apressadamente (apenas três horas se aram entre o ingresso no sistema de protocolo da Assembleia e a aprovação em plenário) que desperta uma série de dúvidas. Muitas delas foram levadas ontem por esta coluna ao MPES, mas ainda jazem sem resposta. Em meio a tantos questionamentos, uma certeza se destaca: a chefe do MPES na verdade ficou sem alternativa. E está buscando transformar um limão numa bela limonada.
Ao acenar agora com um concurso público que o órgão não realiza há muitos anos, Luciana não faz senão se adequar e se antecipar a uma derrota matematicamente certa em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), com iminente desfecho desfavorável ao MPES. Se um concurso público (não tão amplo) já estava nos planos da Procuradoria-Geral de Justiça – como indica fonte com trânsito na cúpula do MPES –, fato é que a decisão de promover o certame foi precipitada e o número de vagas, ampliado pela iminente derrubada, na Suprema Corte, da lei estadual de 2019 que permitiu ao MPES criar nada menos que 307 cargos comissionados de assessoria.
A conexão entre os fatos é evidente: podem fechar-se, muito em breve, 307 vagas de comissionados, por força de decisão do STF; abrir-se-ão, antes disso, 778 vagas para concursados, por decisão política (inescapável) da própria PGJ.
A preferência dada a cargos em comissão – aqueles de livre provimento, que não exigem aprovação em concurso público – foi a opção política adotada e defendida até o limite não só por Luciana de Andrade, mas por seu grupo político no MPES nos últimos anos, incluindo seus antecessores na chefia do órgão: a atual subprocuradora-geral de Justiça istrativa, Elda Spedo, e o hoje desembargador Eder Pontes. A bem da verdade, Luciana “herdou” essa tese dos dois ex-procuradores-gerais de Justiça.
A discussão acerca da criação de centenas de cargos comissionados para assessorar o trabalho dos membros do MPES (promotores e procuradores de Justiça), em detrimento da expansão de cargos efetivos providos por concurso público, começou na gestão de Elda Spedo (2016-2018) e já surgiu gerando forte controvérsia.
À época, como colunista de A Gazeta, eu mesmo cheguei a salientar o fato de que promotores de Justiça vivem questionando, por exemplo, o número de assessores comissionados lotados em Câmaras Municipais por este Espírito Santo afora. Mesmo reconhecendo que o MPES não é um corpo unitário e homogêneo e que cada membro possui autonomia funcional, semelhante opção, feita logo pela cúpula do órgão, sempre soou pouco coerente para mim, sem falar em possíveis inconstitucionalidades – ainda vamos chegar lá.
Àquela altura, a tese de Elda, ecoada por Eder e por Luciana, era a de que, justamente por auxiliar o/a promotor(a) de Justiça diretamente em seu trabalho, seu assessor precisa ser de sua extrema confiança e estar em perfeita harmonia com ele/a, sendo tal coesão justamente o que tende a garantir maior eficiência na prestação do serviço.
Com essa convicção, o então PGJ Eder Pontes mandou para a Assembleia o projeto de lei aprovado de forma relâmpago em julho de 2019 e sancionado em seguida pelo governador Renato Casagrande (PSB), dando origem à Lei Estadual 11.023/2019.
A polêmica normativa, em seu artigo 12, criou os famigerados 307 cargos em comissão, sendo 216 assessores de promotores de Justiça, 45 assessores técnicos (lotados no gabinete do PGJ), 39 assessores especiais (lotados na Corregedoria-Geral do MPES), três assistentes istrativos para o gabinete do PGJ, três assessores de planejamento e gestão lotados na Assessoria de Gestão Estratégica e um assessor de cerimonial, além de quatro funções gratificadas vinculadas à Corregedoria-Geral. Ah, essa mesma lei também criou 21 cargos efetivos.
Desde então, a maior parte desses cargos comissionados foi preenchida no MPES. E a vida seguiu normalmente, certo?
Errado.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade 5934
Com visão totalmente diferente daquela do comando do MPES, a Associação Nacional dos Servidores do Ministério Público (Ansemp) moveu, em abril de 2018, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF.
Inicialmente, a ação mirava em outras três leis estaduais do Espírito Santo, incluindo a 9.496/2010, que também trata do quadro de cargos em comissão e funções gratificadas do MPES. Com a aprovação da Lei 11.023/2019 – que modificou a 9.496/2010 –, a associação ou a pedir, na mesma ação, que o Supremo também reconhecesse a inconstitucionalidade do dispositivo legal que permitiu a criação dos 307 comissionados no MPES.
Para os autores da ADI, o artigo 12 da Lei 11.023/2019 é inconstitucional porque fere de modo flagrante o artigo 37 da Carta Magna, o qual estabelece no inciso II:
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
Ou seja, cargos comissionados devem ser a exceção e não a regra. E tal é justamente o entendimento predominante dos ministros do STF, que já formaram ampla maioria para declarar inconstitucional o artigo 12 da Lei 11.023/2019, no julgamento da ADI da Ansemp, iniciado em fevereiro deste ano.
A lei é hoje uma torre prestes a desmoronar.
Em que pé está o julgamento no STF?
Em fevereiro, o relator da ação, ministro Edson Fachin, reconheceu a inconstitucionalidade da lei estadual de 2019, já tendo sido acompanhado por outros sete ministros na análise do mérito: Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Nunes Marques e Gilmar Mendes. Os oito consideraram a lei inconstitucional.
O problema central apontado no voto do relator é a desproporcionalidade, isto é, o desequilíbrio entre o número de servidores comissionados do MPES e o de servidores concursados. Por isso, Fachin também determinou ao MPES que se adéque, dando ao órgão prazo de um ano, a partir da publicação do acórdão do julgamento (ainda não encerrado), para corrigir o desequilíbrio constatado – ou seja, para contratar servidores efetivos por concurso público. É exatamente o que o MPES está correndo a fazer agora.
Com relação ao prazo concedido, o voto de Fachin foi seguido integralmente por cinco colegas – portanto, a maioria também já está formada nesse aspecto desde o fim de maio, o que também explica a urgência com que a chefe do MPES mandou agora seu projeto para a Assembleia.
Porém, cabe registrar que dois ministros divergiram nesse pormenor: considerando muito curto o prazo para adequação, Alexandre de Moraes opinou que melhor seriam dois anos; já Nunes Marques, num voto meio salomônico, sugeriu prazo de 18 meses. Defendeu, ainda, que a divisão dos cargos de servidores no MPES respeite a proporção de 70% para efetivos e 30% para comissionados.
De todo modo, no mérito, a maioria já está formada: oito dos 11 ministros já acolheram o pedido da Ansemp, considerando inconstitucional o artigo da lei que criou os 307 cargos em comissão; e seis deles deram ao MPES prazo de um ano para corrigir as distorções (por concurso), a contar da publicação da ata do julgamento.
Tecnicamente, o STF está “modulando os efeitos da declaração de inconstitucionalidade para que esta decisão tenha eficácia após decorrido o prazo de doze meses a contar da publicação do acórdão”. É como se o MPES estivesse ganhando uma “carência”: os 307 arão de fato a ser considerados ilegais, mas somente após esse prazo. Então… corra, MPES!
O voto balizador de Fachin
Antes do início do julgamento, a Assembleia Legislativa e governador Renato Casagrande defenderam a constitucionalidade das leis questionadas. A Procuradoria-Geral da República (PGR) – ora, ora… – opinou pela improcedência da ação.
Em sessão virtual de julgamento do Pleno do STF de 3 a 10 de fevereiro, o relator da ADI, Edson Fachin, acolheu o argumento de desproporcionalidade na comparação entre cargos efetivos e comissionados no MPES e estabeleceu prazo de um ano para que a instituição adote as medidas necessárias para sanar o problema.
Basicamente, para Fachin, o MPES ou a tratar como regra o que, constitucionalmente, deve ser a exceção, priorizando a expansão de cargos comissionados em detrimento da ampliação do número de cargos preenchidos por servidores efetivos aprovados em concurso público.
Com a Lei 11.023/2019, que criou os cargos comissionados de assessoramento jurídico, técnico, especial e de promotor de Justiça, a quantidade de cargos de livre provimento no MPES praticamente se igualou à de efetivos no órgão.
Se bem que, como assinalou Fachin, antes mesmo da fatídica lei de 2019, já havia certa desproporcionalidade nessa relação: o MPES àquela altura já contava com 206 comissionados frente a 497 efetivos, de modo que o número de não concursados já ultraava 40% do total de concursados. Em outras palavras, para cada cinco efetivos, havia, em média, mais de dois ocupantes de cargos em comissão.
Com a edição da Lei 11.023/2029, tal situação se agravou, pois a quantidade de comissionados (512) praticamente se igualou à de efetivos (517). As vagas preenchidas por livre nomeação da PGJ aram a corresponder a 99% daquelas preenchidas por concursados no MPES, o que, para Fachin, além de violar o artigo 37 da Lei Maior do país, fere o “princípio da proporcionalidade” e evidencia “a burla à exigência constitucional de concurso público para a investidura em cargos e empregos públicos”.
Para o ministro-relator, a lei estadual de 2019 viola princípios constitucionais que devem reger a istração pública, como os da moralidade, da impessoalidade e da eficiência. “Na prática, a lei impugnada confere tratamento privilegiado a agentes públicos desprovidos de vínculo permanente com a istração, relegando os servidores de carreira a um patamar inferior.”
No voto, Fachin reconhece que não há quantitativo ou percentual definido na Constituição Federal quanto à proporção dos cargos em comissão em relação aos efetivos. “São os parâmetros jurisprudenciais que servem de orientação; o que deve orientar a interpretação é o caráter excepcional que o regime constitucional impõe aos cargos em comissão.”
À luz da Carta Magna, enfim, o concurso público deve ser a regra, enquanto a opção por cargos de livre provimento deve ser tratada como exceção pelos agentes públicos, na visão do relator.
A defesa oral de Luciana
No início do julgamento virtual, Luciana de Andrade chegou a fazer sustentação oral, defendendo a constitucionalidade da lei que criou os 307 cargos em comissão. Argumentou que o MPES seguiu recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a fim de que haja pelo menos um assessor jurídico por membro da instituição.
Conforme aludido no início deste texto, a PGJ reiterou a tese central que vem dos tempos da gestão de Elda Spedo: as atribuições dos cargos em questão exigiriam vínculo de confiança entre o nomeado e o autor da indicação. “O assessor deve estar afinado com o posicionamento e com as diretrizes de atuação do membro que auxilia, viabilizando harmonia, coesão do trabalho, eficiência e agilidade na atuação ministerial.”
Conforme ela afirmou em fevereiro, para um total de 272 membros da ativa no MPES (entre promotores e procuradores), havia, naquele mês, 256 assessores comissionados atuando exclusivamente no assessoramento jurídico da instituição.
Não foi o bastante para convencer a maioria dos ministros.
O voto norteador de Fachin foi seguido por cinco colegas (Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Barroso e Moraes), de sorte que, em fevereiro, já estava constituída a maioria para a derrubada da lei de 2019.
A única pequena discordância, então, partiu de Moraes. Ele entendeu que, em vez de um ano, seria razoável conceder dois anos para permitir que o MPES adote as medidas necessárias à adaptação do seu quadro de cargos:
“Para o desenrolar natural das etapas relativas à realização de eventuais concursos públicos, tais como preparação e publicação de edital, nomeação, posse e transição dos serviços, o prazo de 12 meses mostra-se insuficiente e potencialmente comprometedor do regular funcionamento do Ministério Público como instituição, com evidente prejuízo ao interesse de toda a sociedade”.
Mas não acabou ali, pois o ministro Nunes Marques pediu vista do processo.
O voto de Nunes Marques
Em nova sessão virtual de julgamento, de 26 de maio a 2 de junho, Nunes Marques apresentou seu voto. No mérito, acompanhou o relator, também acolhendo o pedido da Ansemp e declarando inconstitucional o artigo 12 da Lei 11.023/2019.
“Examinada a lei em tela, nota-se que o número de cargos em comissão existentes depois de editada a Lei n. 11.023/2019 (512 cargos) representa mais de 99% do número de cargos efetivos (517), o que acaba por distanciar-se, conforme delineado tanto pelo Relator como pelo ministro Alexandre de Moraes, do mandamento constitucional do concurso público, previsto no art. 37, II e V, da Constituição da República”, afirmou o ministro.
O inciso V do artigo 37 determina que os cargos em comissão “destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento”. “Não é razoável cogitar que, do total de servidores, quase a metade estará a desempenhar atribuições de direção, chefia ou assessoramento. Daí por que a Constituição da República, conquanto reconheça a relevância dos mencionados cargos, afasta essa possibilidade”, ponderou Nunes Marques.
O ministro, entretanto, sugeriu “solução diversa para o caso”, tentando ser salomônico.
“Feitas tais considerações, reconheço haver sérias dificuldades, das mais diversas ordens, quanto ao provimento de referidos cargos, seja por concurso, seja em comissão. O próprio Ministério Público do Espírito Santo ressaltou múltiplas dificuldades de natureza orçamentária, como a alusiva à abertura de concurso público para o provimento de cargos mediante concurso”, anotou Nunes Marques, citando ainda “questões de logística”:
“Não são raros os pedidos de remoção de servidores aprovados, inicialmente, em comarcas distantes, para outras, mais próximas às capitais. Esse fato pode interferir no trabalho realizado pelos membros do Parquet [o MPES], mormente naquelas comarcas mais distantes”.
O ministro ainda argumentou que o Judiciário não deve interferir demais no que o Legislativo aprova:
“Ademais, considero necessário privilegiar o processo legislativo e as opções políticas. O Judiciário deve exercer seu papel dentro de certas balizas traçadas pela Carta da República, entre as quais se insere o princípio da separação dos poderes. Assim, é preciso autocontenção na atuação jurisdicional, em respeito, conforme tenho defendido, ao princípio da separação dos poderes, corolário do sistema de freios e contrapesos, ou checks and balances”.
No fim das contas, Nunes Marques acompanhou o relator quanto à inconstitucionalidade, mas sugeriu “que seja observada a proporção de 70% dos cargos de provimento efetivo para 30% de cargos em comissão providos, que reputo atender ao princípio da proporcionalidade e ao disposto no art. 37, II e V, da Lei Maior”.
Quanto ao prazo para isso, ele também optou por um meio-termo: “Considerando, ainda, ser necessário adequar a estrutura do Ministério Público Estadual aos parâmetros ora fixados, proponho a modulação dos efeitos para que a decisão tenha eficácia após decorrido o prazo de dezoito meses a contar da publicação do acórdão. É como voto”.
Após o voto de Nunes Marques, o ministro Gilmar Mendes acompanhou integralmente o voto de Fachin. Em seguida, Luiz Fux pediu vista dos autos. Pela nova regra que tem sido seguida no Supremo, ele tem até três meses para devolver o processo com seu voto.
Faltarão, assim, só o dele, o de André Mendonça e o de Rosa Weber.
