Coluna Vitor Vogas
Caridade? Deputado promete doar tíquete para instituições
Alcântaro exibiu compromisso firmado em cartório e diz ter decidido “abrir mão de mais de R$ 100 mil”. Mas ele não é obrigado a receber o benefício, o recurso é público e a conta está errada

Deputado Alcântaro Filho. Crédito: Lucas S. Costa/Ales
Um deputado estadual anunciou com alarde em suas redes sociais: não vai embolsar o auxílio-alimentação de mais de R$ 1,8 mil que os parlamentares aprovaram para si mesmos no último dia 19. Mas, calma, não é que ele não vá requerer e receber o benefício. Isso ele vai fazer. Todavia, conforme declarou, o dinheiro será todo revertido para instituições de caridade.
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O deputado em questão é Alcântaro Filho (Republicanos), que cumpre seu primeiro mandato na Assembleia. O parlamentar de Aracruz publicou em suas redes sociais um vídeo em que afirma o compromisso, com direito a uma declaração que ele diz ter lavrado em cartório e que exibe para o público:
“Você deve estar perguntando qual é a posição do Alcântaro em relação ao tíquete-alimentação, não é verdade? Eu analisei profundamente com a nossa equipe jurídica. O tíquete é legal. Mas eu tenho uma novidade. Você que já nos conhece sabe que jamais vou te decepcionar, e meu grande objetivo é servir às famílias capixabas e à nossa região. Por isso acabei de sair do cartório, assinei um compromisso público, onde estou firmando o compromisso de doar todo o tíquete-alimentação durante o nosso mandato em forma de cestas básicas para instituições beneficentes, prioritariamente de Aracruz e região.”
Segundo o deputado, o objetivo dele com esse gesto é dar um exemplo:
“Todo mês vamos escolher uma instituição e vou doar o equivalente ao valor do tíquete, abrindo mão, portanto, em quatro anos, de mais de R$ 100 mil, a fim de dar um exemplo. E que esse exemplo nosso como cristão possa se propagar não somente aos políticos, mas também aos demais Poderes e, principalmente, a você que tem condição, dentro das suas possibilidades, de abençoar a vida de outras pessoas.”
Como se nota no vídeo, o deputado se declara muito cristão. Ele sempre faz questão de enfatizar sua religiosidade em plenário, onde sempre entra e sai carregando um exemplar bem grande da Bíblia.
Bem, “dar de comer a quem tem fome”, ensina Jesus Cristo no livro sagrado dos cristãos (Evangelho segundo Mateus), e redestinar R$ 1,8 mil para pessoas em vulnerabilidade se alimentarem parece realmente melhor do que simplesmente embolsar essa quantia. O valor mensal dá para pagar, aproximadamente, 2,5 cestas básicas completas a preços de Vitória (Dieese/2022).
Mas perguntar não custa nada nem ofende: melhor não seria o deputado fazer essa caridade com o próprio dinheiro, isto é, separando todo mês R$ 1,8 mil do salário de mais de R$ 31 mil que ele já recebe na Assembleia, em vez de fazer assistencialismo com uma verba extra que ele na verdade não tinha, não é obrigado a pedir e que é paga com dinheiro público?
Além disso, com a devida vênia, o discurso do deputado contém um problema de lógica: como é que alguém pode efetivamente “abrir mão” de algo que na realidade ainda não possui, nem é obrigado a pleitear? O auxílio aprovado pelos deputados é facultativo.
Por fim, há um problema matemático. A conta do deputado não fecha: os “mais de R$ 100 mil” estão superestimados, a menos que ele esteja pressupondo e incluindo na equação um reajuste do benefício nos próximos anos que na verdade não se pode estimar (depende da inflação, do caixa da Assembleia e de outros fatores imponderáveis).
Considerando o valor atual, de R$ 1.829,79, se o deputado solicitar o tíquete hoje e ar a recebê-lo no mês de maio, ele terá 45 meses de mandato recebendo o auxílio-alimentação. Ao fim de janeiro de 2027, terá recebido um total de R$ 82,3 mil. Para “mais de R$ 100 mil”, dá uma diferença de aproximadamente 25 cestas básicas a preços de Vitória (Dieese/2022).
