Dia a dia
Jovem queimada em camarote no Sambão do Povo usa redes sociais para driblar preconceito
Em 2017, Letícia teve 46% do corpo queimado durante uma explosão em um camarote durante o Carnaval de Vitória

Letícia Loureiro. Foto: Reprodução/Instagram
46% do corpo queimado, três meses dentro de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e seis anos depois a história de uma vida real se reflete na ajuda a quem não consegue viver com traumas e cicatrizes. ando por cima dos preconceitos e buscando se aceitar, a bacharel em Direito Letícia Loureiro, 29 anos, começou a dividir a própria história, dificuldades e vitórias nas redes sociais.
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O ACIDENTE
O que era para ser uma noite de diversão, se tornou uma tragédia. Em 2017, Letícia teve 46% do corpo queimado durante uma explosão em um camarote durante o Carnaval de Vitória, no Sambão do Povo. A explosão se deu após o garçom usar o álcool em gel para acender um réchaud – utensílio usado para conservar os pratos quentes. O fogo junto com o produto inflamável atingiu o cabelo da jovem e rapidamente se espalhou pelo corpo.
“Eu lembro de tudo. Meu corpo todo estava em chamas. Eu fiquei urrando por muito tempo. Ninguém sabia o que fazer. As pessoas jogavam em mim o que tinham na mão. Eu virei uma bola de fogo. Eu via o fogo me consumindo por inteira. Eu ia andando de um lado pro outro e o fogo não apagava. Minha luta iniciou no momento em que a bateria ava. Caí exatamente na frente dela. Perdi minhas forças em meio a tanta dor e desespero. Então lembro de uma pancada, que foi quando uma pessoa conseguiu apagar o fogo”, conta Letícia.
TRÊS MESES DE INTERNAÇÃO
A jovem precisou ser socorrida pelo Corpo de Bombeiros. Foi levada ao Hospital Unimed Vitória. Depois foi transferida para o Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) do Vitória Apart Hospital. Nesse último, esteve internada por três longos meses, na companhia dos pais e da equipe multidisciplinar. Esta situação associada às debilidades físicas, fez com que a estudante entrasse em um quadro depressivo.
Foram mais de dois meses praticamente sedada para conseguir ar as dores das feridas. No último mês, para driblar o desânimo, tristeza e irritação, foi presenteada pela tia com desenhos para colorir. Para quem mal conseguia segurar um copo descartável vazio, pintar era uma verdadeira vitória. E foi no aniversário do pai, sem poder dar um abraço apertado, que surgiu de seus dedos o desenho da borboleta que, além de ter sido o presente para o pai, se tornou a identidade visual do seu Livro de Memórias.
“Meus pais conseguiram pegar um mês de férias. Eles se desdobravam para ficar comigo. Eu não podia ficar sozinha. Eu não tinha dimensão do que tinha acontecido comigo. Mesmo assim eu desenvolvi um quadro de depressão. Eu não ía ao banheiro. Não andava. O tempo inteiro eu fiquei deitada. Não podia andar, minha pele ‘rasgava’. Eu tinha muitas limitações ali dentro. Eu só teria alta quando eu conseguisse andar. Eu tinha tanta vontade de sair dali, que forcei na fisioterapia para andar e minha pele da perna abriu inteira”, lembra.

Letícia Loureiro. Foto: Reprodução/Instagram
DEPRESSÃO
A alta veio três meses depois do acidente e com ressalvas. Com um quadro de depressão avançada, em consenso com a equipe médica, os pais conseguiram levá-la para casa para ser cuidada pela família. Entre um banho e outro, Letícia se deparou com a real situação do seu corpo e das marcas deixadas pela explosão. Mesmo rodeada pelo amor da família e carinho dos amigos – com quem mantinha contato pela internet -, as limitações eram tantas, que o medo e incertezas tomaram conta.
“Não foi fácil vestir uma malha que apertava o corpo todo. A mesma malha compressiva no rosto, que chegava a sufocar. E no calor? Eu também usava. Não foi fácil sentir as coisas, pois usava luvas. Sabe o sol? Eu já nem sabia bem. Fiquei sem poder ir à praia por três anos. Foi difícil conhecer a dor tão jovem e ter que me privar de tantas coisas. Deixei minha vida social, meus prazeres do dia a dia. Isso dói muito. Eu não estava madura o suficiente para aprender sobre viver tão de repente”, revela Letícia.
Além de ter que lidar com as dores físicas, vieram também as dores emocionais. Ouvir sobre aceitação e superação não era tão fácil. Dessas falas externas, vinha a cobrança interna. E uma mistura de sentimentos que demoraram a ser compreendidos. Seu coração gritava que não era necessária a revolta, mas o caminho não precisava ser a aceitação. Queria buscar uma forma de minimizar as dores e as limitações.
Foi agarrada na fé e com muita terapia, que ou a aceitar o processo. Sim, poderia demorar, mas iria melhorar. Foram buscas incessantes por médicos e especialistas que tratassem queimaduras. Foi um especialista do Rio de Janeiro que alimentou a tão esperada esperança por dias melhores. Já na primeira cirurgia reparadora, pouco mais de um ano depois do acidente, veio a certeza de que tudo ficaria bem.
“Eu não conseguia virar o pescoço ou dobrar as pernas. As queloides coçavam tanto que chegava a machucar. É claro que tem a estética, mas eram tantas as limitações e dores. Eu sabia que não precisava ser daquele jeito. Eu busquei muito essa melhora. Foram cerca de oito cirurgias reparadoras. Eu já perdi as contas. Agora precisamos esperar para ver se será necessário fazer mais”, ressalta.

Letícia Loureiro. Foto: Reprodução/Instagram
DAR A VOLTA POR CIMA
E com as primeiras cirurgias reparadoras, voltou a vontade de viver. Mesmo que de forma tímida e tomada pelo medo, vieram as saídas com os amigos. Sob olhares curiosos e julgadores, mas protegida por quem a amava.
Por recomendações médicas, aliadas à fisioterapia, vieram as atividades físicas. Primeiro foi a canoa havaiana, ou pelas corridas e abraçou a musculação. Exercitar-se trouxe não só um bem-estar físico, mas retomou a autoestima que já há muito lutava para reconstruir.
A virada de chave não foi de um dia para o outro. A luta é diária. Altos e baixos. Levou meses para pegar um copo descartável. Em dois anos conseguiu tomar banho em pé. Aprendeu a ficar parada sem que a perna formigasse. E levou tempo até perceber que não tem que lidar com olhares tortos ou comentários ofensivos.
“As pessoas olham e julgam mesmo. Elas comentam entre si. Você sabe do jeito que você está. Você já não está satisfeito. Não precisa ninguém te olhando pra dizer o que não está bom em você. Mas eu consegui me reconstruir e agora me sinto forte. Eu ei a entender que o diferente seria normal e quero mostrar que o diferente é possível. Não sou hipócrita de dizer que meu corpo é maravilhoso. Se eu pudesse escolher, eu não teria as marcas que tenho. Doeu demais para chegar onde eu estou”, pontua Letícia.
A medida que os anos aram, a estudante ou a aceitar convites para posar para lojas de roupas. “A medida que fui mostrando meu corpo, as pessoas foram me respeitando mais”, disse. “E eu quero mostrar que meu corpo é um corpo real. E acredito que os convites vêem essa expectativa também”.
Foi um caminho longo, desgastante, e muito, muito custoso. Atualmente, Letícia faz uso das redes sociais para mostrar suas batalhas internas e externas. E acredita que falar é a única forma de tentar evitar que outras pessoas sofram acidentes como o dela. Atualmente, com saúde, segue buscando aceitar o novo corpo e tudo o que aconteceu.
“Com o ar do tempo, veio a aceitação – diferente de superação -, e a imensa vontade de mudar um pouquinho o olhar dos outros sobre o diferente, me faz cada vez mais ter a certeza de que o olhar que recrimina, que olha torto e/ou tece comentários desagradáveis sobre as minhas vulnerabilidades, diz muito mais sobre o outro do que a mim mesma”, pontua.
