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A ‘vitória’ de Bolsonaro sobre a pandemia de covid-19
A cena ocorre em 10 de cada 10 finais de campeonato de futebol. O repórter chega para ouvir o jogador do time campeão, e ele, eufórico e aliviado, faz um discurso contra “as críticas de quem não quis enxergar nosso trabalho”. Jair Bolsonaro convocou duas emissoras amigas para dar a entrevista sobre seu teste de covid-19. E falou como um vitorioso em final de campeonato. Estava eufórico por ter finalmente contraído a doença, porque já considera tê-la derrotado no primeiro dia, com auxílio da cloroquina, citada 17 vezes em pouco mais de 20 minutos. O presidente falou várias vezes no ado, como se o mórbido campeonato das mortes provocadas pela covid-19 já tivesse sido encerrado. Infelizmente não se encerrou e não há vitoriosos nessa disputa…
Bolsonaro iniciou a entrevista sem nenhuma pergunta: “Eu fui muito criticado pelas minhas posições no ado…” Correção, presidente. Médicos e especialistas não o criticaram, eles ainda o estão criticando. A entrevista está sendo apontada como um exemplo de tudo a ser evitado por um chefe de estado. Mas a frase é mais reveladora por tratar do tema no ado. Para Bolsonaro, o ponto culminante da pandemia é o fato de ele ter sido infectado. Será o combate do “homem” contra o vírus. E como ele tem histórico de atleta e está protegido pela cloroquina, o embate já tem um vencedor: ele. Bolsonaro deveria ler “A Guerra dos Mundos”, de H. G. Wells.
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A partir daí se segue uma série de ideias sem nenhum sentido. A lista é longa, mas fiquemos só com alguns exemplos:
– “Houve um superdimensionamento da doença”. Ele afirma isso quando o país conta 66 mil mortos. Em março, Bolsonaro havia previsto a ocorrência de menos de 800 mortes pela “gripezinha”. “O número de mortos será inferior ao da H1N1”, afirmou na época.
– “Reforço aqui o que médicos tem dito pelo Brasil todo: a cloroquina, na fase inicial, tem eficácia por volta de 100%”. É afirmação típica de fake news. Há médicos defendendo o uso do medicamento, sob vários cuidados, mas eles não são maioria. E a eficácia de 100% não está registrada em lugar algum.
– “Confesso, se tivesse tomado hidroxicloroquina de forma preventiva, estaria bem.” De onde vem essa certeza?
– “O vírus se dá melhor em climas mais frios”. A maior taxa de letalidade do vírus no Brasil é do Rio (9,6%), seguido por Pernambuco (8,3%) e Ceará (6,2%). Como se sabe, são locais onde neva constantemente…
– “As pessoas abaixo de 40 anos, a chance é próxima a zero de sofrer consequências maiores da doença”. Até 27 de junho, 3.204 brasileiros de até 40 anos tinham morrido em consequência da doença. É o dobro do total de mortos na Polônia, por exemplo.
O restante da entrevista foi na linha adotada desde o início: a pandemia é encarada como algo superado, do ado (“Voltaram as baterias para cima de mim, me criticando de forma até bastante dura. E hoje em dia a gente vê que eu tinha razão…”) e a cloroquina, citada várias vezes em curtíssimo espaço de tempo, é a solução.
Horas mais tarde, ele voltou num vídeo, ainda mais feliz. Eufórico, tomou um comprimido de cloroquina e afirmou, sorrindo para a câmera: “Eu confio, e você?”. Parecia Pelé, na década de 80, fazendo propaganda de Vitasay. Faz sentido: os efeitos de Vitasay para a saúde são tão comprovados cientificamente quanto os da cloroquina…
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