Coluna Vitor Vogas
Ana, Atila, Adnet e Antonio: dilemas em torno do ChatGPT
Não se pode lutar contra a marcha da tecnologia, mas tampouco se deve abraçar os brinquedinhos da inteligência artificial de modo ingênuo e acrítico

ChatGPT. Foto: Mojahid Mottakin/Pexels
Minha filha tem cinco anos. É dona de uma inteligência embasbacante e nem um pouco artificial. Um dia, quando ela era mais novinha, lhe pedi:
> Quer receber as principais notícias do ES360 no WhatsApp? Clique aqui e entre na nossa comunidade!
– Ana, chama o elevador pro papai!
– Elevador!!! – chamou ela, prestativa.
Assim é a linguagem humana: rica, polissêmica, repleta de nuances e ambiguidades. Por vezes, é preciso “a pureza da resposta das crianças” para nos fazer atentar para esse fato.
Não se pode dizer o mesmo do ChatGPT, último colosso mundial em matéria de inteligência artificial. O mais novo brinquedinho da fantástica fábrica do Tio Bill Gates no Vale do Silício ainda não chegou lá. Por ora, ainda é uma espécie de Sheldon Cooper, protagonista do sitcom nerdológico “The Big Bang Theory”: um jovem cientista superdotado capaz de calcular em segundos a rota de um asteroide, mas incapaz de captar a menor nota de sarcasmo e inteiramente desprovido de uma das principais marcas distintivas da espécie humana: o senso de humor.
Limitações à parte, fato é que essa nova ferramenta da Microsoft está aí e chegou para ficar, prenunciando uma revolução em nossos hábitos proporcional à representada pelo surgimento do Google no universo dos buscadores na internet, no início do milênio, se não ainda maior.
Definido por Atila Iamarino, sempre muito didático em seu canal no YouTube, como um “modelo de processamento de linguagem natural”, o ChatGPT (do inglês “Generative Pre-Trained Tansformer”) é um chatbot com inteligência artificial (IA) que fornece soluções em texto para questionamentos feitos por nós, seres humanos.
É, segundo Iamarino, “um método de inteligência artificial que aprende a processar o que nós falamos, lendo documentos que foram transformados matematicamente para aprender quais palavras costumam aparecer depois de quais outras, dando valores para essas combinações”.
Simplificando, é como uma supermáquina de delivery on demand: entrega o que você pedir, sob demanda, atendendo a todas as suas especificações. É um Marcelo Adnet cibernético (para quem não sabe ou não se recorda, esse grande humorista surgiu no programa “15 Minutos”, da MTV, atendendo aos pedidos mais insólitos do público, como “cante um pagode sobre o Botafogo imitando o Silvio Santos”).
O Adnet da Microsoft tem deixado em polvorosa professores do ensino fundamental ao superior. Estes, diante da já verificada multiplicação de casos de plágio; aqueles, frente a um novo, inesperado e superpoderoso vilão em sua já super-heroica luta para convencer alunos a fazer o dever de casa, realizar as próprias pesquisas e escrever as próprias redações.
Ao mesmo tempo, o brinquedinho está tirando o sono de jornalistas, temerosos de perderem de uma vez por todas para as máquinas (parem as máquinas!) seus já mal remunerados empregos – e já atormentados o bastante pela inglória missão diária de combater a difusão de fake news.
Está, ainda, levando ao desespero profissionais especializados que subitamente veem um recurso de IA cumprir em segundos tarefas que até então só eles eram capazes de desempenhar. Pudera: como observa Iamarino, um dos efeitos colaterais do produto da Microsoft é executar funções superespecíficas até então reservadas a especialistas.
Nem tanto ao mar dos apocalípticos nem tanto à terra dos integrados.
Não se pode nadar contra a correnteza, lutar contra a marcha da História e da evolução tecnológica. Já que veio mesmo para ficar, a nova tecnologia deve ser apropriada da forma mais positiva e educativa possível, inclusive em sala de aula. Pode ser perfeitamente adotada para otimizar tarefas triviais e tediosas do cotidiano, ainda mais neste mundo hiperacelerado em que nos metemos. Respondendo em bem menos tempo àquele e-mail burocrático do seu chefe, sobra-lhe mais tempo para brincar com seus filhos, ler aquele romance, dedicar-se ao ócio criativo.
É preciso cuidado, porém. Se não cabem protestos em frente à sede da Microsoft nem campanhas de boicote ao ChatGPT, tampouco me parece aconselhável utilizá-lo de forma ingênua, acrítica e despreocupada, muito menos tratar o programa como a repentina panaceia para todos os problemas da humanidade – até porque também pode criar outros ou agravar alguns males já existentes, como a proliferação de fake news.
E, definitivamente, na visão deste autor, o chatbot não pode substituir exercícios que exigem raciocínio próprio e produção autoral. O aluno ainda precisa escrever a redação “de próprio punho”. O jornalista ainda precisa apurar e escrever sua reportagem. Este artigo sobre o ChatGPT não poderia ser encomendado ao ChatGPT.
A questão da originalidade
Ninguém há de negar o salto exponencial das maravilhas tecnológicas produzidas pele engenho humano nos últimos três séculos, da era das máquinas movidas a vapor à presente revolução digital.
Porém, parafraseando o crítico Antonio Candido na introdução do seu canônico “O direito à literatura” (1988), as tecnologias originalmente criadas para servir ao homem podem ser desvirtuadas e se voltar contra ele por obra do próprio homem; podem tanto servir à qualidade de vida, ao bem-estar e à emancipação da humanidade como à sua opressão e (auto)aniquilação. Talvez o exemplo mais bem-acabado seja a energia atômica.
Já cantavam em 1996 os compositores da Mocidade Independente: “A mão que faz a bomba faz o samba”. Aliás, se você quiser, pode pedir ao ChatGPT para lhe entregar um samba-enredo abordando as inter-relações entre “criador e criatura”… Mas acaso terá esse delivery a mesma emoção emprestada aos versos originais, quando foram entoados na avenida, na pulsante voz do intérprete e em vibrante espetáculo carnavalesco? Terá a mesma criticidade lírica expressada no samba-enredo do desfile campeão da escola de Padre Miguel em 1996?
De igual modo, você pode pedir ao ChatGPT para lhe entregar um artigo de crítica literária como o de Antonio Candido, e a entrega pode ser muito boa e convincente, mapeando, combinando e conectando tudo o que já foi escrito no campo da crítica literária… Mas terá a originalidade intrínseca ao artigo (perdoe o pleonasmo) original de Candido quando foi lançado? Terá o mesmo efeito instigante, provocador e desestabilizar do texto que sacudiu o meio acadêmico quando da sua publicação, resultado do acúmulo de leituras, reflexões e inquietações intelectuais de uma mente humana?
Em termos acadêmicos, somos o que lemos ao longo da vida. Nesse sentido, por radical que isto possa soar, uma dissertação de mestrado não é escrita em dois anos, mas desde o dia em que o pesquisador nasceu. O ChatGPT seria mais ou menos isso, mas em escala insanamente maior, perscrutando, cruzando e “algoritmando” instantaneamente tudo o que está na rede, a partir de comandos específicos ditados pelo usuário. Mas insisto no meu ponto: e quanto à originalidade?
Se entendemos que o que nos diferencia dos outros seres como sapiens é a linguagem, a inteligência artificial já chegou parcialmente ali: não obstante as limitações, utiliza a linguagem ensinada a ela por nós.
Se concebemos que nosso diferencial é a capacidade de pensar, bem, o ChatGPT, num certo sentido, também o faz. Pensa conforme lhe ensinamos a pensar, mas pensa.
Agora, se acreditamos que é a nossa potência criativa (de sistemas numéricos a códigos-fonte, de sistemas de escrita a equações, de óperas à internet das coisas, de línguas a leis, de obras de arte a foguetes, de receitas culinárias a tratados de filosofia, de brincadeiras infantis às Olimpíadas, da Odisseia ao Capital) o que nos torna singulares como seres humanos, aí, bem, a discussão fica mais complexa.
Afinal, o ChatGPT efetivamente cria algo? Ora, o programa não se criou sozinho. Tampouco cria sozinho as suas respostas a cada demanda. Estas são o resultado do “escaneamento” de tudo o que já está disponível na rede e que foi gerado (logo, criado) por mentes humanas.
Além disso – e aqui parece estarmos diante de um ponto fulcral do debate –, a revolucionária ferramenta não gera nada por si mesma, isto é, não entrega resposta alguma se não for provocada a fazer isso por uma mente humana (o solicitante). E a entrega, a resposta a ser dada, é determinada justamente pela formulação da pergunta ou do comando, pela escolha das palavras do demandante. Portanto, a intervenção humana já está aí de qualquer forma: é o requerente, com sua subjetividade, quem “direciona” a resposta a ser gerada.
Quando deslocamos a discussão para o campo estético, especificamente o literário, as limitações do ChatGPT ficam ainda mais expostas no confronto com a originalidade inerente à criação artística humana. A literatura ensina, enleva, deleita, diverte, comove, suscita reflexões, provoca discussões, instiga a pensar, questiona valores, comportamentos sociais e práticas cotidianas sedimentadas… tudo isso a partir da criação original do autor.
Você pode pedir à máquina para lhe dar tudo o que já foi escrito sobre Drummond, para escrever em seu lugar uma redação sobre Drummond para a sua professora de Literatura no ensino médio, para lhe entregar um artigo acadêmico sobre Drummond a fim de ar em disciplina da faculdade… pode até demandar à máquina que lhe escreva um poema emulando o estilo de Drummond. Tudo isso a máquina vai lhe entregar. Mas a máquina não criará sozinha “A máquina do mundo”, com a potência crítica e criativa que arrebatou leitores e críticos em 1951.
Humor, sarcasmo, ambiguidades e lirismo
O usuário propõe ao mecanismo de inteligência artificial:
– Eu tenho dois cachorros. Um se chama Pete; o outro, Repete. Pete morreu. Quem ficou?
– Repete – responde o programa.
O fanfarrão repete a pergunta; o programa repete a resposta; homem e máquina seguem nesse jogo ad nauseam.
Como indicado no início deste artigo, as maravilhas da Inteligência Artificial carecem de noções de pragmática. Conforme argumenta Emily M. Bender, têm capacidade limitada em entender a linguagem humana e a importância de se considerar o contexto e o conhecimento prévio de mundo compartilhado pelos interlocutores em situações concretas de comunicação, como fazem os seres humanos.
Para a professora de Linguística na Universidade de Washington, isso é inclusive temerário, pois torna essas tecnologias suscetíveis a erros de interpretação e à disseminação de informações incorretas – o que nos remete ao alerta de Candido em 1988 e ao samba campeão da Mocidade em 1996.
Eu fico com a pureza das perguntas das crianças. E com seu lirismo involuntário.
Um exercício interessantíssimo seria ditar ao ChatGPT perguntas espontâneas feitas aos pais por crianças de cinco anos.
A minha – e encerro com Ana, já que com ela comecei – surpreendeu-me com estas dia desses. De sua cadeirinha no assento traseiro do carro, observava as nuvens no céu e quis saber com genuíno interesse: “Papai, será que as nuvens no céu são algodão doce para os anjinhos comerem? O que é que eles comem no céu? E todo mundo que vai pro céu vira anjo? E como é que a gente reconhece eles, então?”
Que respostas o ChatGPT teria para isso?
Até gostaria de saber… Mas estou mais interessado nas perguntas.
Obs: Republicação de texto publicado neste espaço no dia 18/04/2023. Ana já tem seis anos.
