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Coluna Vitor Vogas

A história sem pé nem cabeça contada por Lula sobre governo Vitor Buaiz

Narrativa do presidente, na Serra, sobre o que foi o único governo do PT até hoje no ES é um pequeno atentado à história política capixaba

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Lula discursa no ato de inauguração da obra do Contorno do Mestre Álvaro. Foto: Hélio Filho/Secom

Falando de improviso na cerimônia de inauguração do Contorno do Mestre Álvaro na última sexta-feira (15), o presidente Lula (PT) contou ao público uma história completamente sem nexo sobre o que foi o governo de Vitor Buaiz, até hoje o único do PT no Espírito Santo. Cometeu alguns erros históricos crassos. Antes de ar a apontá-los, retomemos as palavras exatas do presidente da República, diante da plateia de apoiadores, no palanque montado na Serra:

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“Mas eu tenho recordações maravilhosas das quantas vezes eu vim aqui neste Estado, da construção da quantidade de amigos que eu fiz aqui… Mas o que me deixa saudade mesmo é que aqui foi o estado em que a gente elegeu o companheiro Vitor Buaiz prefeito da capital pela primeira vez. Em 2002, elegemos o primeiro governador do estado aqui, o companheiro Vitor Buaiz, um médico da maior competência, um médico muito competente, que só cometeu um erro, Casagrande: ele acreditou no Governo Federal, que não o ajudava como a gente faz. Ele acreditou demais, e o Vitor Buaiz perdeu as eleições depois. Não tinha reeleição naquele tempo. E o Vitor Buaiz foi uma pessoa que eu guardo dele a melhor recordação de relação entre dois seres humanos.”

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Vitor Buaiz de fato foi um dos primeiros prefeitos eleitos pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na capital de um estado do país – e foi isso certamente o que Lula quis dizer com “prefeito da capital pela primeira vez”. Antes dele, somente Maria Luíza Fontenele, eleita prefeita de Fortaleza pelo PT em 1985. Lula não precisou o ano – o que, a julgar pela sequência da fala, foi até uma sorte, pois a chance de errar era grande. O médico chegou à Prefeitura de Vitória no pleito de 1988 e governou até 1992, sendo sucedido no cargo por Paulo Hartung (então no PSDB).

A confusão toda começa quando Lula a a se referir à chegada e à agem de Vitor Buaiz pelo Governo do Espírito Santo. Ao dizer que, “em 2002, elegemos o primeiro governador do estado aqui”, o presidente errou o ano por quase uma década. Na verdade, Vitor elegeu-se governador em 1994, dois anos depois de concluir o mandato na Prefeitura de Vitória. Foi o primeiro governador eleito pelo PT, ao lado de Cristovam Buarque, também vitorioso na disputa para o Governo do Distrito Federal em 1994.

O ano, no caso, faz uma enorme diferença: a diferença de ter governado tendo Fernando Henrique Cardoso ou o próprio Lula na Presidência da República.

A opção correta é a primeira.

Em 1994, embalado pelo sucesso do Plano Real, elaborado por uma equipe de economistas liderada por ele, um sociólogo, como ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, FHC (PSDB) ganhou facilmente a eleição para a Presidência da República, no 1º turno, deixando para trás o próprio Lula. Enquanto isso, no Espírito Santo, Vitor Buaiz derrotou Cabo Camata no 2º turno, em uma campanha marcada por uma união de forças progressistas e democráticas para evitar a chegada de Camata ao Palácio Anchieta. Com esse objetivo, até FHC apoiou Vitor no 2º turno.

Lula afirma que o único erro de Vitor foi que “ele acreditou demais no Governo Federal, que não o ajudava como a gente faz”. Essa afirmação é muito problemática, por duas razões.

A primeira é a falta de nexo cronológico. Ora, 2002 foi o ano em que o próprio Lula se elegeu pela primeira vez para a Presidência da República. Se Vitor tivesse chegado ao Palácio Anchieta em 2002, conforme o relato de Lula, então o “Governo Federal que não o ajudava” teria sido, na verdade, o dele mesmo, o que é um absoluto contrassenso. É um atentado contra a linha do tempo política estadual e nacional.

A segunda e mais grave razão é a infidelidade aos fatos históricos. Ora, qualquer pessoa com o mínimo de conhecimento sobre o governo Vitor sabe que sua istração não cometeu “só um erro”, muito menos que seu “único erro” foi o de ter “acreditado demais no Governo Federal [no caso, o de FHC], que não o ajudava”. A inverdade histórica é flagrante.

Ora, o que se deu foi exatamente o contrário. Ok, como eram de partidos antagônicos – numa saudosa época em que a polarização política brasileira se dava entre PT e PSDB –, FHC pode até não ter ajudado o governo de Vitor Buaiz tanto quanto poderia ou deveria. Mas isso não chega perto de alcançar toda a verdade.

O governo Vitor pecou muito pelos próprios erros. E o maior deles, se podemos chamar assim, foi certamente o de ter, na verdade, apostado contra o governo FHC, ou, para ser mais exato, contra o Plano Real, carro-chefe da istração do tucano no Planalto.

Após uma sucessão de planos monetários furados ao longo da década anterior – sobretudo nos governos de Sarney e Collor –, sempre fracassados no intento de controlar a inflação, Vitor, ao assumir o Governo do Espírito Santo, concedeu um reajuste salarial para o funcionalismo estadual muito acima da inflação. Acreditou que esta cresceria também com o Plano Real. Mas, contrariando a expectativa do governo petista, o plano dessa vez deu certo e, pela primeira vez em muito tempo, a inflação no país ficou sob controle, mantida em patamares aceitáveis.

Resultado: de saída, o governo Vitor armou uma bomba fiscal para si mesmo. Isso já tendo herdado uma situação financeira ruim do seu antecessor, Albuíno Azeredo.

Com o governo obrigado a honrar o reajuste que decidira dar, a folha de pagamento ficou inchada, sugando dinheiro que poderia ser investido em outras áreas. E esse foi só o começo do enfraquecimento do governo. De 1995 a 1998, o Poder Executivo Estadual ficou muito fragilizado do ponto de vista político, gradativamente mais refém da Assembleia Legislativa.

O período coincidiu justamente com o início da chamada “Era Gratz”, que se estenderia por todo o governo seguinte, de José Ignácio Ferreira (eleito em 1998 pelo PSDB). O deputado José Carlos Gratz ascendeu à presidência da Assembleia em 1997, bem no meio do governo Vitor, e nela permaneceu até o começo de 2003. Vale frisar: Gratz chegou à presidência do Parlamento Estadual com o endosso do Palácio Anchieta, que o apoiou na eleição da Mesa Diretora no começo de 1997, contra o então deputado estadual Lelo Coimbra, candidato apoiado pela bancada petista.

Vitor nem sequer terminou o governo filiado ao PT. Em 1997, foi para o Partido Verde (PV), após dois anos e meio de conflitos com o próprio partido, sobretudo as alas petistas mais radicais. Na Assembleia, os deputados do PT tornaram-se a principal força de oposição ao governo do próprio partido, votando regularmente contra suas iniciativas.

Em entrevista à Folha de S. Paulo, publicada em janeiro de 1998, o próprio Vitor reconheceu que os conflitos com o PT ajudaram “a afundar o partido e o governo”. Avaliou, ainda, que ter saído do PT lhe fizera bem tanto do ponto de vista político como do psicológico.

Então percebam: se podemos dizer que o governo Vitor cometeu um erro, se devemos resumir os seus equívocos a apenas um, não foi o de ter acreditado demais no Governo Federal, mas sim justamente o contrário: o de ter duvidado do sucesso do plano econômico do referido governo.

Outra incoerência histórica contada por Lula é que Vitor “perdeu as eleições depois”, para logo em seguida, contradizendo-se, afirmar que “não tinha reeleição naquele tempo”.

Nem uma coisa nem outra.

Na verdade, “naquele tempo” (1998) já havia reeleição no Brasil, sim. Para ser ainda mais preciso, as eleições gerais daquele ano inauguraram no país a possibilidade de reeleição para cargos do Executivo, instituída por FHC após mudança na Constituição Federal aprovada no Congresso Nacional.

O próprio FHC reeleger-se-ia presidente, novamente no 1º turno e novamente deixando para trás Lula, que acumularia então a sua terceira derrota seguida. Nos estados, alguns governadores lograram renovar o mandato. Um exemplo foi Mário Covas (PSDB), eleito governador de São Paulo em 1994 e reeleito em 1998, nos dois casos tendo como vice Geraldo Alckmin – hoje vice-presidente de Lula, numa dessas muitas voltas incríveis que o mundo político dá.

Ora, se assim foi, por que então Vitor Buaiz não renovou seu mandato no Governo do Espírito Santo? Porque “perdeu as eleições depois”? Porque “não tinha reeleição naquele tempo”?

Não.

Simplesmente porque ele nem sequer chegou a disputar a reeleição, de tão debilitado politicamente que chegou ao fim do mandato. Estava tão impopular que não teria a menor chance.

Sabem quem, esse sim, disputou aquele pleito como um dos representantes da esquerda? Ninguém menos que José Renato Casagrande (PSB), na primeira de suas cinco participações em eleições para o Palácio Anchieta até hoje. Casagrande terminou em 4º lugar, com 12% dos votos, enquanto José Ignácio sagrou-se vencedor no 1º turno.

O atual governador do Espírito Santo e aliado de Lula conhece essa história em detalhes, bem melhor que o colunista. Afinal, viveu-a por dentro… por dentro do governo Vitor, de quem foi nada menos que vice-governador.

Casagrande não poderia dizer nada naquelas circunstâncias, mas deve ter achado muito estranha essa versão contada por Lula, especialmente quando o presidente dirigiu-se a ele, buscando sua cumplicidade: “um médico muito competente, que só cometeu um erro, Casagrande”.

Conclusão

Dono de raro poder de oratória, o presidente Lula adora falar de improviso. É um dos seus charmes. Como já destacado aqui, seu discurso no evento de inauguração do Contorno do Mestre Álvaro foi pontuado por bons momentos.

É até certo ponto compreensível que, num estado em que quase nunca pisa, o presidente queira agradar aos apoiadores locais, contando causos, celebrando velhos companheiros da terra e enaltecendo o governo de seu partido naquele estado – o de Vitor, até hoje, foi o único do PT no Espírito Santo.

Lula, porém, parece apostar na falta de memória, ou de conhecimento mesmo, do público. Não pode simplesmente sair dizendo qualquer coisa por aí, esperando que todos engulam a sua narrativa só porque é ele quem está contando.

Pela responsabilidade do cargo que ocupa e por ser um líder popular muito influente sobre seus adoradores, o presidente precisa ter mais zelo com a história quando se põe a recontá-la.

Sérgio Camata?!?

No mesmo pronunciamento, Lula ainda cometeu uma pequena violência à memória do governador e senador Gerson Camata, chamando-o pelo nome errado.

“O Gerson Camata era o companheiro que mais falava: ‘Presidente Lula, nunca um governador do Brasil colocou tanto dinheiro aqui como o senhor colocou’. E o Sérgio Camata foi vítima também de uma desgraça, de um irresponsável que o matou.”

Errata

A coluna também cometeu um erro ao buscar fazer os devidos reparos e emendas na história contada por Lula sobre o governo Vitor Buaiz. Inicialmente, publicamos que Vitor foi o primeiro prefeito eleito em uma capital do país pelo PT. Na verdade, foi Maria Luíza Fontenele, em Fortaleza, na eleição de 1985. Na eleição municipal seguinte, em 1988, Vitor foi eleito prefeito de Vitória. No mesmo pleito, Luiza Erundina chegou à Prefeitura de São Paulo.