Coluna Vitor Vogas
Análise: separação entre os Poderes fica só no discurso no ES
Nesta sesmaria, faz tempo que a mais simples ameaça de disputa democrática é tomada por “risco de ruptura institucional” e que a interferência cada vez mais aberta do Executivo sobre os outros Poderes é tomada por “maturidade institucional”

Da esquerda para a direita: Marcelo Santos, Davi Diniz, Renato Casagrande e o presidente do TCES, Domingos Taufner. Foto: Assessoria de Marcelo Santos
Não quero aqui de modo algum colocar em dúvida a capacidade do próximo conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCES), Davi Diniz, eleito para o cargo pela Assembleia Legislativa na última segunda-feira (6). O ex-chefe da Casa Civil por certo está mais que habilitado para o exercício da função. Tampouco vou aqui encampar aquele discurso de que as vagas do TCES que são de indicação da Assembleia devem ser preenchidas por deputados. Davi certamente é tão ou mais qualificado do que seria qualquer um dos 30 atuais parlamentares para ser conselheiro de contas. Não, não se trata disso.
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A discussão que proponho aqui é outra.
Ora, todo mundo sabe que Davi Diniz, até ontem o principal articulador do Palácio Anchieta com a Assembleia, era o candidato do governo Casagrande. Pela maneira como se deu sua eleição, como candidato único e quase por unanimidade na votação realizada no plenário na última segunda, a escolha desse novo conselheiro é a mais recente manifestação de um fenômeno que grassa há muitos anos no meio político capixaba: no Espírito Santo, faz tempo que a mais simples ameaça de disputa democrática é tomada por “risco de ruptura institucional” e que a interferência cada vez mais aberta do Executivo sobre os outros Poderes é tomada por “maturidade institucional”.
O conceito de “independência entre Poderes” ganhou um significado muito elástico, com o Poder Executivo se agigantando e se sobrepondo cada vez mais aos demais. Outra marca do fenômeno é um excessivo e indevido atrelamento, para não dizer subordinação, do Palácio Domingos Martins, sede da Assembleia, ao Palácio Anchieta.
Ano após ano, as decisões concernentes ao Legislativo Estadual têm sido tomadas no gabinete do governador. E, se antes ainda havia um cuidado maior com certa discrição para ao menos se manterem as aparências, ultimamente tudo tem sido feito às escâncaras, tal o grau de naturalização a que chegou essa “invasividade institucional”. Temos um Executivo hipertrofiado e um Legislativo que, se não é subserviente, não faz o mínimo esforço para se libertar dessas amarras.
Foi assim, no Palácio Anchieta, que se decidiu a chegada de Erick Musso à presidência da Assembleia no começo de 2017, desbancando o então presidente, Theodorico Ferraço, que literalmente saiu do gabinete do então governador Paulo Hartung cuspindo marimbondos e acusando-o de ser um escorpião – cena testemunhada por este colunista.
Foi assim que se decidiu a permanência de Erick no cargo nas duas eleições seguintes.
Foi assim que se definiu a eleição de Luiz Carlos Cicilliotti, outro candidato patrocinado por Casagrande em vaga de indicação da Assembleia, para o assento do conselheiro Valci Ferreira no TCES, em fevereiro de 2019.
Foi assim, desabridamente, que se deu a ascensão de Marcelo Santos à presidência da Ales no lugar de Erick, no começo de 2023, contando com um apoio explícito, ineditamente proclamado à imprensa por Renato Casagrande.
E é assim que acaba de se determinar a indicação do novo conselheiro, a qual, por sinal, começou a ser definida exatamente quando da chegada de Marcelo ao comando da Ales, como “cláusula pétrea” do acordo firmado com Casagrande: em troca do apoio do governador, ele não concorreria à vaga aberta agora com a aposentadoria de Sérgio Borges no TCES.
É óbvio que esse modo de fazer política não é exclusividade de Casagrande nem foi inaugurado por Marcelo.
Desde os primeiros governos de Paulo Hartung (2003-2010), a separação entre os Poderes no Espírito Santo tem feito Montesquieu se revirar no túmulo. É fato que, naquele momento, o Estado carecia de uma urgente e radical “concertação”, recém-saído que estava de sob os escombros de um período em que o crime organizado se espalhou por todos os Poderes e instituições estaduais.
Ocorre que se ou do ponto. Sob o lema da “reconstrução das instituições no Espírito Santo”, instituiu-se um modelo de cooptação do Executivo sobre os outros Poderes e uma unidade política que beira a unanimidade. O governo “engole” toda divergência como um buraco negro no universo ou um campo gravitacional de irresistível atração magnética. Ninguém lhe escapa.
Em que pesem as desavenças políticas e os diferentes estilos de liderança, Casagrande herdou de Hartung esse modelo, o manteve e o “aprimorou”.
Hartung era mais sutil, operava com mão igualmente pesada, mas sempre por intermédio de terceiros. Nunca deixava suas próprias digitais nas manobras de interferência sobre instituições externas.
Casagrande, desde o segundo governo (2019-2022), ou a fazer isso de maneira cada vez mais direta e reta. Foi assim na já citada condução de Ciciliotti ao TCES, em fevereiro de 2019. Reeleito para o atual governo e mais “empoderado” que nunca, o governador parece ter perdido qualquer resquício de pudor em exibir a sua mão pesada, projetar sobre o quintal vizinho a sombra do seu palácio cada vez maior e mantê-lo assim: sob a sombra do seu palácio.
Notem como ele agiu na última eleição da Mesa Diretora da Assembleia, declarando à imprensa, com ineditismo, apoio a um candidato à presidência, em um movimento determinante para virar a favor de Marcelo um jogo até então muito favorável a Vandinho Leite (PSDB).
Agora, a escolha do próximo conselheiro do TCES foi praticamente decidida com antecedência entre Casagrande e Marcelo, chefes do Executivo e do Legislativo, em reuniões a portas fechadas no gabinete do primeiro, registradas por Marcelo no Instagram.

Marcelo Santos e Renato Casagrande se reuniram para tratar da vaga do TCES em 21/02/2023
Transformada em regra, a interferência sobre outros Poderes ou a ser realizada à luz do dia, de maneira declarada, tamanho o grau de banalização a que chegou esse modus operandi no Espírito Santo.
Hoje em dia isso é tratado como algo corriqueiro, inerente ao quotidiano político, como se fosse “normal” (a norma) e como se o poder político só pudesse ser exercido dessa forma. A interferência do Executivo sobre os demais foi tão assimilada, tão incorporada ao dia a dia do capixaba, que já nem a questionamos, aliás, já nem sequer a estranhamos.
A “harmonia entre os Poderes, assegurada a independência de cada um”, está na boca de todos os chefes de Poder e é repetida como mantra por eles, assim como a “maturidade institucional alcançada pelo Espírito Santo”.
Mas discurso e prática não coincidem. O princípio iluminista e republicano da separação e da independência entre os Poderes fica só ali, muito bonito, no discurso e no artigo 2° da Constituição Federal, mas há muito tempo deixou de ser de fato exercitado no Espírito Santo.
Está no discurso
O mantra foi repetido por Marcelo Santos logo após a consagração de Davi Diniz pelo voto dos deputados na eleição para o TCES na segunda-feira. Estava contido em seu discurso:
“A vaga no TCES é de livre indicação da Assembleia, e cabe a nós, deputados e deputadas, a responsabilidade de escolher quem irá compor tão importante colegiado. E vale destacar que esse momento não se resume à escolha de um nome. É a coroação de um processo de reconstrução da história do Espírito Santo, onde os Poderes constituídos, outrora fragmentados, aprenderam a trabalhar em harmonia. […] Avançamos muito, mas temos convicção que ainda há muito a ser feito. E tudo isso é fruto de maturidade, do diálogo que reina entre os Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e demais instituições que diuturnamente trabalham em prol do desenvolvimento econômico e social do nosso estado. […] Que este dia sirva como um marco na história do Espírito Santo, um símbolo da união e do compromisso dos Poderes constituídos com o bem-estar da nossa gente.” (grifos nossos)
Com a palavra, Davi
Logo após sua eleição para o TCES, Davi Diniz concedeu uma entrevista. Respondeu assim à pergunta sobre ser ou não o candidato do Palácio Anchieta à vaga de conselheiro do tribunal:
“O processo é da Assembleia, então cabe aos deputados a escolha. É óbvio que, autorizado pelo governador Renato Casagrande, eu fiz a articulação com os deputados. Mas coube aos deputados a escolha, e fiz com eles esse diálogo na busca desse apoiamento.” O secretário ainda destacou a importância da manutenção da harmonia entre o governo e a Assembleia.
Também perguntamos a Davi se o fato de ele chegar ao Pleno do TCES após ter atuado por mais de cinco anos como chefe da Casa Civil aumenta a influência do governo Casagrande sobre a Corte de Contas.
“Não”, refutou. “Acredito que a Corte de Contas tem a independência suficiente e a liberdade suficiente para fazer os julgamentos de acordo com os conselheiros que estão lá. A Corte de Contas tem a sua independência estabelecida e vai julgar de acordo com os critérios técnicos, objetivos, não pelos critérios políticos ou por indicação.”
Mas e quanto ao “conselheiro que ainda não está lá”, no caso ele mesmo? Também terá essa alegada independência?
“Acho que tem a liturgia do cargo que precisa ser respeitada. A independência do cargo e a independência do tribunal em relação às questões políticas devem ser respeitadas, e assim o farei”, encerrou.
